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Com o anúncio de Trump, no último dia 9 de julho, da aplicação de tarifas de 50% sobre importações do Brasil, toda a base petista e de seus partidos-satélites tomou para si o discurso nacionalista da defesa da soberania nacional.
Com essa decisão, Trump permitiu que o PT finalmente se apropriasse eficientemente desse tipo de discurso, coisa que o partido vem tentando fazer há um bom tempo, como ilustram os bonés azuis “O Brasil é dos Brasileiros”, criados em fevereiro deste ano, que parodiam os bonés vermelhos do MAGA. O governo pode agora reverter a descensão de popularidade dos meses anteriores, e junto a isso, surge a oportunidade de apresentar Bolsonaro e seus aliados como “traidores da nação” e “capachos do Estados Unidos”, dando força à narrativa crescente em meio à esquerda reformista de que o mundo atualmente divide-se entre o “Imperialismo” de um lado - representado pelos países que compõem o G7 -, e o BRICS, supostamente o polo de resistência às ofensivas do primeiro, do outro.
No âmbito da política institucional, a atual situação do capitalismo se expressa em nosso país (e em muitos outros) na eterna elaboração de medidas paliativas e discussões sobre a tributação ou o direcionamento de verbas discricionárias do orçamento, sem planos de desenvolvimento a longo prazo, porque esse desenvolvimento tornou-se impossível. Uma campanha presidencial para um partido como o PT, nos dias de hoje, é uma série de promessas de resoluções econômicas técnicas que resultam sempre no mesmo: um mandato de 4 anos “fazendo o que dá”. Os partidos da ala direita do capital aparentam navegar melhor na crise: se por um lado também devem lidar com a deterioração das condições de acumulação do capital, não têm de se preocupar com cumprir com uma narrativa inviável de modernização, podendo simplesmente realizar seu assalto privado ao Estado. De qualquer forma, parte constitutiva do momento atual, globalmente, para ambas essas alas, é atribuir a culpa do não-cumprimento das promessas de campanha e da ausência de crescimento a longo prazo a sujeitos variados: daí surgem, como exemplos mais relevantes ao caso em questão, os conflitos entre o poder Executivo e Legislativo, assim como o nacionalismo.
Comparativamente, a ideologia da nação soberana que no parlamento europeu ganhou o nome de “soberanismo” sustenta-se na crença de que um “retorno ao Estado soberano” seria a melhor forma de combater os danos causados pelo “globalismo” da União Europeia, ONU, OTAN, etc. A força política desse movimento tem crescido, representada por partidos como o alemão AfD ou o português CHEGA!, assim como por populistas individuais como Matteo Salvini, que em 2019 impediu um barco com 147 refugiados de atracar na Itália. Geralmente, o alvo de comparações com estas figuras abjetas no Brasil é Bolsonaro, com sua bravata racista contra refugiados venezuelanos. Contudo, os partidos da ala esquerda do capital na Europa já demonstraram que têm capacidade de violência racista similar à dos soberanistas, como no caso do Labour Party britânico com suas políticas anti-imigração. Similarmente, no Brasil, o governo Lula anulou seu veto ao projeto do Marco Temporal para negociar a aprovação de sua reforma tributária. Desde então, observa-se uma gigantesca escalada de violência contra os povos indígenas: de acordo com o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), no primeiro ano de vigência do projeto, 221 indígenas foram assassinados no Brasil, e o desmatamento, garimpo com mercúrio e queimadas em terras indígenas aumentaram em território significativamente [1].
O resumo da ópera é que globalmente, as alas concorrentes do capital, que com a instabilidade política trazida pelo agravamento da crise global no início da última década tornaram-se incapazes de chegar a um consenso, competem para ver quem consegue assumir o discurso nacionalista de forma mais eficiente, porque tal discurso se revelou como arma potente para mistificar ou distrair dos efeitos dessa mesma crise; conter, excluir e reprimir as populações indígenas e imigrantes; e eleger políticos que governarão de acordo com os interesses desses diferentes e conflituosos blocos burgueses. Trump, ao anunciar essas tarifas, deu ao PT a oportunidade de assumir esse discurso, e o partido aproveitou.
Uma coincidência oportuna nesse processo é de que para o dia 10 de julho, um dia após o anúncio do tarifaço de Trump, estavam marcadas manifestações da campanha “Congresso/Centrão Inimigo do Povo” - que tinha como intuito, como o próprio nome indica, afirmar o Executivo “de esquerda” como “amigo do povo”, impedido de cumprir suas promessas pelo Legislativo do “Centrão”, “inimigo do povo”. Com o anúncio de Trump, a questão da soberania nacional apareceu com centralidade nesses protestos. Um vídeo publicado na página Al Jazeera English mostra um boneco de Trump sendo jogado ao fogo ao som da palavra de ordem “O Brasil é nosso!”, assim como uma faixa do Psol dizendo “#Respeita o Brasil!” [2].
Não deve surpreender ninguém que não só o Psol, como partidos e organizações da dita esquerda revolucionária compareceram ao ato petista. O “ataque à democracia” do 8 de janeiro de 2023 já havia servido em grande medida para a criação de uma aliança que incluía desde a FIESP até os partidos de esquerda na defesa da democracia. Estes últimos tomaram a palavra de ordem “Sem Anistia”, pela punição dos envolvidos na tal tentativa de golpe, que tem surgido em diversas das manifestações e peças de propaganda da esquerda desses últimos anos. Essa participação no teatro democrático não deve ser entendida como um desvio destes partidos em relação aos seus princípios, mas como a realização plena de suas funções: sustentar o PT e defender a estabilidade burguesa sob a bandeira do antifascismo (atitude que não diverge, de forma alguma, da função histórica do antifascismo). Agora, com o tarifaço, essas mesmas organizações identificam os interesses dos trabalhadores que dizem representar com aquelas do Estado-nação brasileiro, atrelando seu sofrimento à falta de soberania, a Trump e aos traidores da pátria, e o espetáculo prossegue.
Dessa forma, colocam-se algumas questões de suma importância sobre a conjuntura do Brasil de hoje: se após as revoltas de 2013 e os escândalos de corrupção culminando na queda do PT, a governabilidade burguesa no Brasil foi desequilibrada e nossos capitalistas buscaram novos representantes políticos para seus interesses - processo de que o bolsonarismo é o maior representante - como se encontra essa governabilidade nos dias de hoje? O PT conseguiu recuperar sua posição como polo agregador dos interesses de um grande bloco capitalista consensual? A estabilidade política fraturada na década passada foi plenamente recuperada?
A popularidade do governo tem caído entre o proletariado, e mesmo após a reversão da queda, com as respostas ao tarifaço, continua na casa dos 50%. Essa queda é condicionada, de um lado, pelos níveis de desemprego e informalidade (esta chega a quase 40% da população ocupada), e de outro, pela produtividade insuficiente para dar conta do crescimento econômico, gerando um hiato positivo do produto, de forma que o preço das mercadorias com que os trabalhadores sobrevivem fica cada vez mais alto. Além disso, para elevar suas taxas de lucro em uma situação como esta, a classe capitalista paga salários abaixo do valor da força de trabalho, assim como intensifica as jornadas com escalas exaustivas como a 6x1 [3]. Ainda que o proletariado tenha mostrado-se inativo em suas lutas - a mais notória luta não-defensiva de trabalhadores dos últimos tempos, pelo fim da escala 6x1, se encontra majoritariamente submetida a lideranças petistas [4] - condições como as atuais, dentro e fora do trabalho, têm o potencial de gerar desdobramentos na luta de classes de forma a reverter tal situação.
É difícil afirmar que a estabilidade tenha sido restaurada também pela persistência do bolsonarismo, que ainda representa alguns setores capitalistas, como o da burguesia varejista e certos grupos burgueses do agro - além de possuir uma larga base de apoio na pequena-burguesia e em alguns setores do proletariado precarizado. Além disso, após a FIESP endossar uma carta em defesa da democracia no dia anterior à eleição presidencial de 2022, seu então presidente Josué Gomes foi destituído por uma ala contrária dentro da entidade, mostrando que mesmo no setor que o PT mais busca representar atualmente - a cada vez menos relevante burguesia industrial - ainda existem empecilhos para essa representação.
É inegável, porém, que processos como o 8 de janeiro e o tarifaço contribuem para uma aproximação desse consenso, e existe o perigo da ofensiva imperialista de Trump aumentar ainda mais, levando mais setores à conciliação. A burguesia brasileira encontra-se, portanto, em uma situação ambígua: muitos de seus membros possuem lealdades políticas ao bolsonarismo, local e nacionalmente, mas perceberam que a ordem democrática é a melhor via para acumulação nesse momento. Configura-se assim, pelo menos momentaneamente, uma ordem mais próxima à estabilidade do que antes, mas com rachaduras que podem crescer no futuro dadas na base de apoio que a extrema-direita ainda detém, na incapacidade do PT cumprir com sua narrativa de modernização e na deterioração do cenário econômico a nível nacional e global.
A estratégia utilizada pelos partidos da tal “oposição de esquerda” ao governo Lula consiste em tentativas de tomar o discurso petista para si, radicalizando-o, denunciando o governo como “conciliador” e, se estiverem em um dia particularmente “radical”, como burguês; não em um reconhecimento do caráter burguês de todo Estado, mas em uma crítica que, se não como simples conselho ao governo, aparece como uma ilusão do tipo: “se a figura pública de meu partido fosse presidente, faríamos melhor”. O discurso em torno do arcabouço fiscal, que tem norteado esse setor desde 2023, é particularmente representativo disso. Como afirma a Transição Socialista em um texto conjuntural:
[…] o debate sobre a destinação dos impostos é um problema dos capitalistas. Essa discussão é alheia aos interesses da classe trabalhadora, pois pressupõe que a exploração já foi realizada (considera a extração e realização da mais-valia post festum). Quando um novo regime fiscal e uma nova regra tributária são aprovados no parlamento burguês, dá-se apenas uma negociação entre setores da burguesia para definir como e quanto da mais-valia global será concedida às suas necessidades comuns/burguesas. A classe trabalhadora não tem poder de decisão algum nos rumos dessa política, pois é uma luta que já pressupõe a sua derrota. […] [5]
Ainda assim, essas organizações insistem em demandar do governo coisas como o fim do arcabouço fiscal e o não-pagamento da dívida pública, isto é, tentam dar conselhos ao Estado sobre como a mais-valia extraída no processo de exploração dos trabalhadores deve ser, na verdade, investida em projetos sociais para “o povo”. Fazem isso, é claro, afirmando representar o proletariado, cujo processo de luta deve, de acordo com eles, culminar na realização dessas demandas toscas de administração estatal.
Portanto, não deve surpreender ninguém que tanto nas manifestações do “Congresso Inimigo do Povo” quanto na campanha nacionalista pós-tarifaço, tais organizações decidiram “disputar espaço”: tomar parte, oportunisticamente, nas ilusões da classe trabalhadora, para aumentar o próprio número de militantes e filiados, e ganhar projeção.
Além disso, se o PT sustenta-se em uma narrativa de modernização baseada na aliança com a burguesia industrial, com a qual busca “impulsionar a reindustrialização do Brasil, fortalecendo sua posição como potência industrial global” e “superar sua [do Brasil] histórica vocação primário-exportadora” [6], disso também deriva parte do papel dos partidos da “oposição de esquerda” em sustentar o governo a que se opõem, dado que o socialismo que essas organizações defendem é, ele também, um socialismo de modernização. O PSTU, por exemplo, é programaticamente contra a “desindustrialização”, como demonstra o texto “A Recolonização do Brasil”, de 2019:
Falamos em “recolonização” do Brasil porque há um processo de desindustrialização do país e de cristalização de uma economia nacional baseada na produção e extração de matérias primas para vender pro exterior e que, assim como no período colonial, compra os produtos manufaturados das “metrópoles”. A participação do país na indústria de transformação mundial vem caindo a cada ano. […] Enquanto isso, o governo estimula e governa para o agronegócio e para os bancos. [7]
É evidente o nacionalismo desenvolvimentista de uma formulação como essa, onde o problema central é a “recolonização”, ou a relação desigual de comércio entre o Brasil e outras nações, de forma que a mais-valia extraída pelos capitalistas nacionais é escoada para os de fora. A preocupação aqui é a mesma da citação acima, em que o petista Reginaldo Lopes descreve o objetivo do programa Nova Indústria Brasil.
No mesmo texto, o PSTU chega à seguinte conclusão:
A covardia da burguesia brasileira não é uma característica inata. Ela é herança do medo que os senhores de terra tinham dos negros escravizados e que se transformou, posteriormente, num pavor da classe trabalhadora e do povo pobre. Por isso, a burguesia é capaz de entregar a faixa presidencial a um miliciano populista e de extrema-direita como Bolsonaro e é incapaz de romper com o imperialismo ou cumprir qualquer papel progressivo no país. Exatamente por isso, é completamente equivocado renunciar à independência política da classe trabalhadora em nome de uma unidade com a burguesia. […] [8]
É de se perguntar se um governo como o atual, que busca desenvolver a indústria e representar os interesses dos burgueses industriais, restitui à burguesia brasileira a capacidade de “romper com o imperialismo” e cumprir um “papel progressivo” que, como lamenta o PSTU, haveria desaparecido “no país”. Mais do que isso, fica a questão de para onde vai a “independência política da classe trabalhadora” numa tal situação. Enfim, se a covardia de nossa burguesia, o tal medo que ela tem dos trabalhadores, se expressa no fato dela ter colocado Bolsonaro no poder, disso decorre, lendo de trás para frente, que ter colocado Fernando Haddad no poder em 2018 seria um aumento no poder dos trabalhadores?
Um outro exemplo mais recente, sobre o atual governo, é a publicação do jornal O Futuro, do PCBR, a respeito do tarifaço, que termina da seguinte forma:
Por trás desse recuo todo do governo federal, fica escancarado que muitas promessas de campanha nas eleições não serão cumpridas, como a reestatização da Eletrobrás. Tal assunto foi levantado no início do mandato, mas já rapidamente esquecido. Ou seja, ao invés de promover um debate nacional junto com os trabalhadores sobre um assunto tão essencial à soberania brasileira (alardeada aos quatro ventos recentemente contra a política tarifária do governo estadunidense), o governo Lula decide abandonar essa bandeira com o objetivo de não “desagradar” a própria base do governo no Congresso. [9]
Aqui, novamente, nossos comunistas aconselham Lula sobre a melhor forma de governar, afirmando que o nacionalismo petista não é empregado da forma correta, e que deveria, alternativamente, se debruçar sobre a reestatização da Eletrobrás. Ora, toda estatização deriva de interesses da burguesia, de forma a socializar os custos quando um capitalista individual não é capaz de desenvolver ou rentabilizar uma empresa. Isso se mantém até que ela possa ser privatizada. O objetivo de toda estatização, portanto, é possibilitar rentabilidade para diferentes capitais e, como estamos falando de modernização, desenvolver as forças produtivas.
Frente ao espírito da modernização surgem, assim, muitos sacerdotes que competem pelos rumos da igreja, acusando-se entre si de não realizarem, verdadeiramente, as profecias incumpridas da revolução burguesa. Amadeo Bordiga castigou esses tipos quando afirmou:
Não se deve entender que a dialética consiste em dizer que: a economia faz a política, mas depois a política (basicamente reduzida a prática do estado) refaz a economia à sua maneira. […] Marx disse que os homens fazem sua própria história, velha objeção de meros remastigadores. É certo que o fazem com as mãos, pés, boca e até com armas; materialmente o fazem, mas o que negamos é que fazem com a cabeça, ou seja, estão longe de “construir” (termo exagerado e do empresariado burguês) sobre um modelo ou projeto, completamente pensado. Fazem, mas não como acreditavam ou tinham noção do que faziam, nem como previam ou desejavam. Aqui está o ponto. [10]
Aos construtores do socialismo [11], que o entendem como um projeto de engenharia a ser realizado, contrapõe-se o movimento real que abole o estado atual das coisas. Essa famosa frase de Marx e Engels, muitas vezes acusada de fraseologia abstrata por esses mesmos construtores, é na verdade o contrário: serve de contraponto a todo idealismo barato que entende que o comunismo já existe latente em algum ponto da sociedade capitalista - seja na mente de um socialista que deseja melhorar a sociedade com ferrovias construídas pelo Estado Proletário, seja nas formas organizativas de diferentes tipos que “prefiguram” a sociedade futura, em cujas molduras busca-se encaixar forçosamente o conteúdo do comunismo, sem sucesso.
Na história do movimento operário, o desenvolvimento das forças produtivas foi muitas vezes identificado com o sucesso da luta dos trabalhadores. Isto já pode ser visto no Partido Social-Democrata Alemão, no final do século XIX, onde a demanda por desenvolvimento aparecia intimamente vinculada a demandas por estatização. Emprestando as palavras de Walter Benjamin:
Nada foi mais corruptor para a classe operária alemã que a opinião de que ela nadava com a corrente. O desenvolvimento técnico era visto como o declive da corrente, na qual ela supunha estar nadando. Daí só havia um passo para crer que o trabalho industrial, que aparecia sob os traços do progresso técnico, representava uma grande conquista política. [12]
Na União Soviética e demais países do socialismo real, o desenvolvimento das forças produtivas colocou-se na ordem do dia na medida em que a revolução mundial não se realizou e a rentabilidade de suas empresas precisou ser possibilitada para a sobrevivência no capitalismo global. A tese de Benjamin é uma excelente descrição para esse processo, pois, dessa forma, a recém desenvolvida identidade operária - ou a particularização da classe como distinta da burguesia, sob o signo do trabalho - pôde entrelaçar-se ainda mais profundamente ao processo de modernização. Assim, a forma revolucionária do início do século XX - a primeira fase da subsunção real do trabalho ao capital - foi a da revolução como afirmação de classe e desenvolvimento produtivo dos Estados-nações, e dentro dela, determinando-a, estava a contrarrevolução: a afirmação do proletariado é a afirmação de uma classe do modo de produção capitalista; e o desenvolvimento das forças produtivas não é neutro, representa a dominação da natureza pelo homem.
Isso explica em boa parte o fato dos partidos comunistas de hoje, como os que criticamos acima, tomarem posições nacionalistas e desenvolvimentistas. Afinal, se determinada pela relação de classe capitalista de então, a contrarrevolução encontrava-se no próprio horizonte revolucionário do século passado, é natural que organizações que herdam esse horizonte de forma acrítica reproduzam a contrarrevolução ad infinitum: “A tradição de todas as gerações mortas oprime como um pesadelo o cérebro dos vivos” [13]. A questão é: não estamos mais na primeira fase da subsunção real do trabalho ao capital. O desenvolvimento global do capitalismo (e, paralelamente, o caráter irrevogavelmente mundial da revolução) coloca como imediato não o desenvolvimento das forças produtivas sob o Estado-nação soberano, mas seu decrescimento em nome da relação harmônica entre a humanidade e a natureza. O Partido e os conselhos operários, atualmente, não podem ser encontrados em lugar algum, e a classe não pode mais se afirmar positivamente e emancipar o trabalho: na revolução que se coloca para nós hoje, o proletariado só pode se auto-abolir e, ao fazer isso, superar também suas formas de auto-organização.
Contudo, como sinaliza Théorie Communiste:
[…] é preciso levar em conta como característica deste ciclo de lutas o fato de que a batalha contra a “má” auto-organização é travada em nome da “boa” auto-organização. Atualmente, é só de dentro desta batalha em nome da “boa” auto-organização que a batalha contra a própria auto-organização se manifesta, isto é, só aqui a perspectiva da revolução aparece como algo que não pertence mais à ordem da afirmação da classe e que, como resultado, não pode mais ser radicalmente da ordem da auto-organização ou autonomia. [14]
Como resultado da crise econômica e climática, a separação de populações de suas terras e consequente imigração aparece como um fenômeno cada vez mais generalizado. Tratado como problema político para diversas nações do mundo como, por exemplo, o deslocamento em direção à Europa das populações árabes devastadas pelo genocídio imperialista, ou o de populações do México e América Central aos EUA, estes problemas políticos são, na verdade, problemas de economia política, pois representam o aumento de populações excedentes ao capital, aumento previsto na lei geral da acumulação capitalista d’O Capital de Marx. O processo de produção capitalista não necessita mais de trabalhadores o suficiente para ocupar esse contingente populacional cada vez maior, mas ainda assim esses sujeitos precisam sobreviver. A resposta dada ao problema pelos Estados é evidente para qualquer um que olha ao redor: “Qualquer questão de absorção dessa humanidade excedente foi deixada para trás. Ela existe agora só para ser gerida: segregada para dentro de prisões, marginalizada em guetos e campos, disciplinada pela polícia, e aniquilada pela guerra” [15].
O caráter colonial dos Estados-nações revela-se em todos os cantos do mundo. Seja no Irã, que aumentou seu número de deportações de imigrantes afegãos desde o início da guerra; na Índia, que faz o mesmo com imigrantes muçulmanos de diversas nações vizinhas; ou no Brasil, que promove guerra, com encarceramento e genocídio, contra as populações das favelas e os povos indígenas. O atual projeto em curso no país promove uma devastação sem precedentes da natureza e o genocídio e deslocamento forçoso de indígenas pelo território. Enquanto o agronegócio promove guerra direta contra os “falsos índios”, com invasões e assassinatos em massa, a ala progressista, em grande medida conivente com esse massacre, oferece paternalmente a oportunidade para os indígenas deslocados um dia transformarem-se em cidadãos brasileiros, sujeitos atomizados, totalmente separados de suas terras e comunidades.
Tal caráter de cidadão pode ser oferecido, dado e revogado livremente pelo Estado, e possui maiores e menores graus de fragilidade a depender do sujeito de que se fala. Basta apenas observar como o proletariado imigrante é tratado em momentos que os capitalistas necessitam de mão-de-obra barata ou de uma reserva de trabalhadores; e o que lhes acontece quando generaliza-se um aumento do capital constante (meios de produção) em relação ao capital variável (força de trabalho) ou durante uma crise econômica. Este movimento de recepção e expulsão (ou encarceramento, marginalização, genocídio) de proletários e povos deslocados é mediado pelo Estado-nação de acordo com os interesses capitalistas, e frente a isso, diferentes movimentos de luta dos trabalhadores têm surgido globalmente. Tais lutas tomam como ponto de partida aquilo que os trabalhadores são na sociedade capitalista, como sua raça, seu gênero, os povos a que pertencem e que encontram-se, muitas vezes, deslocados de suas terras pelo Estado, sob a brutalidade da polícia. As formas que essas lutas tomam podem ser difusas, fugazes, e suas demandas contraditórias e com ilusões reformistas. Entretanto, estas lutas têm o potencial de engendrar, dentro de si mesmas, conforme estão em movimento, sua própria crítica ao chegarem aos limites determinados pelas formas e demandas que tomam: mesmo as mais combativas e independentes chegam ao limite de se reconhecerem como a luta de uma classe do modo de produção capitalista.
É no ponto de reconhecimento e movimento de superação deste fato, isto é, a transformação - por dentro da luta e para além dos seus limites - das relações recíprocas do proletariado, que um elemento unificador pode ser encontrado. Tal relação dialética entre unidade e multiplicidade determina a revolução que se coloca para o proletariado no atual ciclo de lutas. As lutas parciais, díspares, localizadas, minoritárias e com demandas variadas não serão superadas por fora, a partir de uma unidade formal, positiva, por meio da identificação com o trabalho, a nação, o desenvolvimento produtivo, a política ou qualquer outro elemento. A unidade revolucionária será negativa, não será “unidade da esquerda”, será unidade pelo fim da classe, pela comunização; uma unidade que dissolve-se. Como se dará esse salto mortal é algo que só a luta é capaz de dizer.
Observemos a luta, então, pois nossa única certeza é do seu retorno.
[1] - “No primeiro ano de vigência do marco temporal, 211 indígenas foram assassinados no Brasil” por Gabriela Moncau. Publicado em: https://www.brasildefato.com.br/2025/07/28/no-primeiro-ano-de-vigencia-do-marco-temporal-211-indigenas-foram-assassinados-no-brasil/
[2] - Vídeo da página Al Jazeera English: https://www.instagram.com/reel/DL9p_dGsbF7/?utm_source=ig_web_copy_link&igsh=MzRlODBiNWFlZA==
[3] - Para uma análise econômica mais detalhada desse processo, recomendamos a leitura do mais recente editorial da Transição Socialista: https://transicao.org/destaque/a-popularidade-de-lula-na-encruzilhada/
[4] - Escrevemos sobre isto em dois de nossos comunicados do final do ano passado: https://antipoda.comrades.sbs/artigos/2024/11/19/personalismoVAT.html e https://antipoda.comrades.sbs/artigos/2024/12/20/contraprodutividade.html
[5] - “Arcabouço fiscal, reforma tributária e erros da “esquerda socialista”” por Transição Socialista. Publicado em: https://transicao.org/conjuntura/arcabouco-fiscal-reforma-tributaria-e-erros-da-esquerda-socialista/
[6] - Citado de artigo de Reginaldo Lopes, publicado no site do PT, defendendo a nova política industrial do governo Lula 3, o Nova Indústria Brasil: https://pt.org.br/nova-politica-industrial-mais-crescimento-para-o-brasil-por-reginaldo-lopes/
[7] - “A Recolonização do Brasil” por Wagner Damasceno. Publicado em: https://www.pstu.org.br/a-recolonizacao-do-brasil/
[8] - Ibid.
[9] - “Governo Lula: da crise à bravata nacionalista”. Publicado em: https://jornalofuturo.com.br/artigo/C0t5oc-governo-lula-da-crise-a-bravata-nacionalista
[10] - “O conteúdo original do programa comunista é a anulação do indivíduo enquanto sujeito econômico, titular de direitos e ator da história humana” por Il Programma Comunista (1958); Tradução de Felix Bouard publicada em: https://www.marxists.org/portugues/bordiga/1958/mes/40.htm
[11] - Nada ilustra melhor a relação entre esta crítica e o reformismo nacionalista de que a presente análise trata do que a palavra de ordem que escutamos no último ato de 1º de maio: “Esse país tá num abismo / A solução é construir o socialismo”.
[12] - “Teses sobre o conceito de história” por Walter Benjamin (1940); Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Citado de: https://www.proibidao.org/wp-content/uploads/2011/10/Sobre-o-conceito-de-historia_Walter-Benjamin.pdf
[13] - “O 18 Brumário de Luís Bonaparte” por Karl Marx (1852); tirado de Obras Escolhidas de Marx e Engels, Rio de Janeiro: Vitória, maio de 1961. Volume 1, págs. 199-285. Citado de: https://www.marxists.org/portugues/marx/1852/brumario/cap01.htm
[14] - “Self-organisation is the first act of the revolution; it then becomes an obstacle which the revolution has to overcome” por Théorie Communiste (2005). Citado de: http://web.archive.org/web/20060511151616/http://meeting.senonevero.net/article.php3?id_article=72
[15] - “Misery and Debt” por Endnotes (2010). Publicado em: https://endnotes.org.uk/articles/misery-and-debt**