Tribuna - Por mais silêncio na sala (Piazão do Norte)

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montagem mostrando uma festa da Boiler Room acontecendo sobre uma pilha de crânios

Por Piazão do Norte

Esta é uma contribuição para o espaço de tribunas de debate do Grupo Comunista Antípoda, mas não necessariamente reflete a opinião do grupo.

É provável que, a essa altura, o leitor já esteja familiarizado com as motivações por trás do movimento espontâneo de boicote ao Boiler Room, que levou ao cancelamento do festival que ocorreria na sexta-feira, dia 01 de agosto, na capital paulista. O KKR, um superconglomerado financeiro estadunidense, diretamente vinculado à expansão do colonialismo sionista na Cisjordânia e ao extermínio do povo palestino na Faixa de Gaza, tornou-se responsável pelo financiamento da Superstruct, empresa responsável pelo Boiler Room, em dezembro do ano passado. Daí, decorreram os mais variados tipos de reação por parte de artistas, produtores e entusiastas da cena (público consumidor), desde o apoio inegociável ao boicote, inclusive, por parte de artistas de grande projeção, às velhas confissões niilistas e conformistas daqueles que permanecem presos ao sonho mentiroso (e, como veremos, macabro) criado e vendido pelo Capital. Todas elas, por erradas ou corretas que estejam, justificáveis a seu modo, vejamos caso a caso.

A fração de pessoas que se colocou ao lado do boicote foi majoritária. Afinal, era difícil defender aberta e apaixonadamente o prosseguimento do festival sem correr o risco de tergiversar a realidade mórbida que o evento esconde (existiram, sim, aqueles que conseguiram, muito “qualificadamente”, fazê-lo). As grandes discordâncias ocorreram, de fato, para decidir quem seriam os alvos “legítimos” do boicote: se seriam os artistas, junto com todo o resto da equipe do festival; ou estritamente a produção do evento junto de seus investidores, eximindo da responsabilidade aqueles que comandariam este mórbido e sombrio ritual de adoração à morte, pois, de acordo com alguns, a não participação no Boiler Room poderia “prejudicar” a carreira e ameaçar o “sonho” que muitos dos artistas projetavam no evento (talvez, durante a maior parte da história do evento, por ótimas razões).

A sociedade do Capital é a sociedade dos sonhos, das promessas, das sensações, das aparências, das ilusões, das mentiras. Nesta sociedade, que ocorre em um processo automático, involuntário e incontrolável, tudo o que acontece ou deixa de acontecer é sempre, em última instância, culpa de uma entidade maligna e invisível, que se esconde por trás de cada objeto que nos cerca, criada pela contradição entre a produção e o produtor, com origem na propriedade privada, a saber: o Capital. Quando nos deparamos com ela na vida cotidiana, nunca a reconhecemos imediatamente. Ela possui tantas caras e identidades quanto existem mercadorias nas prateleiras dos supermercados; possui tantos interesses, conhecimentos e opiniões quanto existem livros nas estantes de uma livraria e artigos em um jornal; possui tantas personalidades, aparências e identidades quanto existem peças de roupa em uma loja da Renner e tantas sonoridades quanto existem músicas no Spotify ou no Soundcloud. A entidade também possui as pessoas. Como DJ’s, damos de cara com o monstro toda vez que buscamos ou somos buscados por algum contratante, contratante este que, por sua vez, se depara novamente com o monstro na noite daquele dia, na mesma hora e local onde iremos (como consumidores) para esquecer o NOSSO PRÓPRIO encontro diário com a criatura e dançar na cara dela, na ball room que ela mesma criou. Para que você possa esquecê-lo por um momento, alguma outra pessoa precisa estar encarando o monstro naquele mesmo instante.

No caso específico do DJ, enquanto o público canta, dança, bebe e se entorpece, ele é possuído pela criatura. Pelo preço de um ingresso, o monstro que possui o DJ vende um sedativo para aqueles que o mesmo monstro trucidou em outros momentos do dia, em outros espaços da cidade. Parando por aqui as figuras de linguagem, vamos a uma parte mais literal (não menos assombrosa e complexa) da exposição.

Talvez, o maior mérito de Marx tenha sido o de revelar, ainda no primeiro capítulo do volume I d’O Capital que, por trás de toda mercadoria, onde enxergamos uma relação direta entre coisas, se escondem, na verdade, relações indiretas entre pessoas. Se pegarmos uma CDJ e a examinarmos mais de perto, por detrás do jog, do cue, dos faders, dos loops e dos echos, descobrimos horas e mais horas de trabalho humano condensado. Em cada loop de transição, em cada play e a cada aperto no cue da CDJ estamos apertando, na verdade, as mãos de milhares (talvez milhões) de trabalhadores: operários da Pioneer, carregadores, engenheiros, vendedores, programadores, transportadores, técnicos… todos aqueles que participaram do processo de produção, circulação e venda de cada mínimo componente que coloca a controladora na nossa frente, à nossa disposição, onde nos expressamos (pelo menos, até onde o Capital permite) e ganhamos parte do nosso pão. Se isso é verdade para as mercadorias palpáveis, físicas, que conseguimos manusear e que permitem que exerçamos nossa função na divisão social do trabalho, isso não é menos válido pras formas culturais, artísticas e espirituais encarnadas pelo monstro do Capital.

Vamos tratar, então, da mercadoria (mercadoria, sim, ainda que alguns aspirantes a “marxista” tentem ignorar isso) central que o debate orbita: a Boiler. Mas antes, um (nem tão) breve raciocínio deve nortear essa sequência. Como vimos anteriormente, cada mercadoria (compra e venda, troca de um objeto) esconde, em suas sucessivas fases de existência, a relação entre pessoas. O que existe de comum entre o momento onde o trabalhador petroquímico processa o petróleo que, por sua vez, é refinado por um químico e transformado em plástico pelo trabalho de técnicos, plástico este que vai revestir nossa controladora, o momento onde os operários da Pioneer juntam as peças que formarão nossas DDJ’s, XDJ’s, CDj’s, o momento onde o DJ aperta o cue e o momento, seja ele qual for, em que os investidores da Boiler utilizam o lucro de suas festas (seja em outras festas, lavagem de dinheiro, ou em empreendimentos imobiliários na Faixa de Gaza) é o momento unificador de todos os outros, o momento do consumo. Com isso em mente, vamos ao caso da Boiler Room, entendida aqui como uma mercadoria e expressão da indústria cultural e da sociedade do espetáculo.

Quando vamos a uma ball room pra fritar, dançar, beijar, chapar, esquecer a realidade torpe que a entidade cria, dançamos às custas de todos os operários da Pioneer, responsáveis pelo nosso equipamento, dos DJ’s, dos produtores do evento, dos empregados do evento, e toda forma de trabalho humano responsável pela concretização do evento (que circula de maneira abstrata e indiferenciada na forma-dinheiro, bom lembrar). Dançamos, portanto, ao mesmo tempo que na room, nas fábricas, nas linhas de montagem da pioneer, nas adegas da Jack Daniels, e em qualquer espaço pra onde vá o dinheiro do consumidor depois dali, ou que veio antes e nos levou até aquele momento festivo. Da mesma forma, ao consumir qualquer bem no cotidiano, como uma xícara (no meu caso, uma caneca comicamente grande) de café, por exemplo, nos relacionamos com o cafezal e o cafeicultor, com o canavial e com o boia-fria (pros que gostam de café doce). Como um DJ, mas também como comunista, é preciso reconhecer: cada um desses momentos concentra e produz o mais brutal processo de exploração capitalista. Exploramos, indiretamente, os operários, os DJs, os produtores, a natureza e sabemos que, em algum lugar dessa cadeia, existe alguém sofrendo e abrindo mão da própria individualidade para que ele próprio, enquanto individuo, possa continuar existindo e nós continuemos dançando. A partir daí, verdade, parece muito lógico (e talvez, até necessário) chegar à seguinte conclusão: não existe consumo ético no Capital, nada pode ser feito. Ora, parece uma afirmação bastante razoável. Mas, olhemos a Coisa mais de perto: a realidade da exploração, sob a ditadura do Capital, constitui o movimento da produção e reprodução de nossas vidas e existências. Quem quer existir nessa sociedade ou se submete à exploração, em maior ou menor grau, ou passa a ser o promotor da exploração. Nesse sádico vai-e-vem, uma objeção subsiste, ainda que tímida, nas entranhas de sua essência, enquanto potencialidade: o horizonte da revolução social. Os explorados, condenados da terra, destinados a lutar até que sua condição se altere, permanecem lutando enquanto continuam vivos. Uma vida, talvez miserável, explorada, mas existente carrega a possibilidade de ruptura, de vingança, de revanche contra sua sombria realidade. Aos vivos, ainda é reservado o direito e a obrigação de lutar por sua emancipação, de fazer explodir a fúria acumulada das gerações passadas e derrotadas e ainda de, talvez, caso sobrevivam até o fim de semana, o direito de curtir um baile. Em outros tempos, antes da trágica ofensiva do sionismo contra a cena eletrônica underground (que, dentro dos limites do progressismo burguês, se colocava como “defensora” dos povos oprimidos) era possível recorrer a esse subterfúgio e ainda manter-se a muitas e muitas trocas de distância das pilhas de corpos de um povo inteiro. Hoje, no entanto, o público-consumidor e o dinheiro do seu ingresso, bem como o DJ e o trabalho que vende não estão muito além de duas ou três trocas de distância da indústria de extermínio de palestinos famintos. E os mortos, quando explorados, não podem se vingar. Cada palestino, assassinado pelos financiadores da Boiler, não teve o direito de se manter vivo e entorpecido, dançando na sexta-feira para se alienar através do espetáculo e, talvez, postergando sua vingança contra o sionismo para a segunda-feira seguinte. Nem os mortos estão à salvo enquanto o inimigo vencer (e ele vem vencendo). O que podemos tirar disso? Ignorando minhas divagações, possivelmente nada coesas e potencialmente confusas, o movimento de boicote ao Boiler Room foi um sucesso absoluto. Ainda que, do ponto de vista marxista, seja um evento de pouca ou nenhuma importância pra revolução social, enquanto DJ, sou imensamente grato ao movimento de boicote, formado por artistas independentes, ao D. Silvestre, à Alírio, à Delcu e ao DJ Thiago Martins por impedirem o funk brasileiro de se transformar na trilha sonora da catástrofe. Caso o evento tivesse ocorrido, e se olhássemos mais de perto, da mesma forma que vimos os operários da pioneer escondidos nas CDJ’s, veríamos que o Douglas Silvestre estaria tocando, na verdade, entre os escombros de dezenas de hospitais, escolas, moradias e construções palestinas destruídas pelos mísseis israelenses; veríamos a pista lotada da classe média paulistana dançando sobre dezenas de milhares de cadáveres, chapando, festejando sobre eles, pisoteando-os. No momento exato do apertar do cue, seria quase possível sentir, no toque dos seus dedos, o apertar do gatilho de um soldado sionista. A entidade continua a nos dominar, a nos possuir, a orquestrar o extermínio de um povo inteiro através do sionismo e toda a cadeia de valor que o sustenta. Mas, pelo menos, fizemos da cena um enorme espaço de propaganda e denúncia. Foi, mais do que tudo, uma demarcação de posição. Sem dúvida, do ponto de vista agitativo, foi um movimento simbólico relevante na luta contra o sionismo, ainda que inofensivo à estrutura da KKR e ao movimento da criatura (capital), que nos assombra como um persistente pesadelo, a nível global. Se o movimento revolucionário pode tirar algo disso, não sou eu que direi o que possa vir a ser esse algo. Entretanto, engancho algumas inquietações a respeito das manifestações da “vanguarda” do proletariado acerca dos acontecimentos recentes.

Chegando aos finalmentes, a razão fundamental que motiva minha escrita e o título desse ensaio. A bem da verdade, não me agradou muito a ideia de responder à pataquada publicada no jornal O Futuro (imprensa do PCBR) sobre o Boiler Room, diretamente. São incontáveis as não-posições e não-opiniões saídas das mentes de quadros dirigentes do PCBR acerca dos mais variados temas do movimento social geral. Assusta, na verdade, que seja difícil encontrar algo de marxista (ainda que performance leninista, tenha de sobra) nas suas intervenções públicas. Diagnóstico necessário e acho que nem um pouco vaidoso de minha parte. 

O artigo intitulado “a quem serve o boicote à Boiler Room”, de autoria de Mateus Filgueira, expressa e sintetiza a qualificação média das “intervenções” políticas do partido, cujos autores constituem, em teoria, a parcela dirigente mais avançada da organização. 

Questiono, antes de tudo, se o autor do texto compreende, ainda que intuitiva e vagamente, a que a terminologia “Capital” remete. O que fica de impressão àqueles que não possuem tanta confiança na própria ignorância e que preferem ler bastante, antes de se aventurar a sair por aí escrevendo em jornais “comunistas”, é a de que o autor sequer arranhou as primeiras páginas do Capital ou, caso o tenha feito, talvez a de que só seja burro demais para compreender as linhas que lê. Em todo caso, é menos danoso à sociedade (e ao movimento operário em específico) que, no lugar de advogarmos por esses ruídos, esparsos, confusos, tenhamos mais silêncio na sala. A soberba típica dos aspirantes ao titulo de marxista, que se demonstram (e cada vez mais) alérgicos à leitura e à interpretação literal da produção marxiana e mesmo assim, do topo de sua altissonância, se sentem no direito de aconselhar os outros sobre quaisquer assuntos que sejam, é mais danosa ao movimento comunista do que a própria reação. 

É comunista aquele que se coloca como o contrário de todo o estado de coisas presente. E falar em consumo “ético” é uma bravata liberal. Quando compro um pacote de café, um pen-drive ou um tênis pela internet, eu não consigo não imaginar, ainda que rapidamente, quantos esforços humanos estão congelados naquele objeto. Não tem como não ficar minimamente incomodado com a história por trás de cada mercadoria produzida na sociedade do Capital. Agora, se eu fritasse ou tocasse em um evento, cujo uma parte expressiva dos dividendos dos seus lucros fosse pra uma empresa que financia a destruição de lares e vidas palestinas, em nome de empreendimentos imobiliários, eu ia me sentir um pouco mal, confesso. Os comunistas têm pouco que ver com grandes eventos da indústria do espetáculo. A posição revolucionária é somente aquela que aponta em direção à destruição do Capital. Por fim, a única resposta possível é recomendar ao autor que cale a boca e trate de ler umas 500 páginas do Capital e outras 500 páginas de teoria crítica antes de tentar apontar “insuficiências” e “autonomismos” em um movimento de boicote, de intuito primordialmente agitativo, e fazer uma intervenção que fica atrás das defesas mais ignóbeis e leigas de pessoas com nenhuma relação com o movimento revolucionário. Nem mesmo as posições mais indefensáveis de artistas em redes sociais chegavam a defender a Boiler Room, em nome de sua suposta política de “representatividade” e “visibilidade” pra artistas no (e essa parte é importante) MERCADO musical; ou, pior ainda, colocando o evento como “pró-palestina”. 

Vimos, mais uma vez (e dessa vez, por sorte) as propostas da vanguarda sendo ultrapassadas pelo movimento real e autônomo. Felizmente, ninguém seguiu a proposta do “camarada”, o boicote aconteceu e o evento foi cancelado.