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Os preços estão mais altos. Os verões estão mais quentes. O vento está mais forte, o salário mais baixo, e as chamas se acendem mais facilmente. Tornados percorrem as cidades na planície como anjos vingadores. Algo mudou. Pragas ardem nas profundezas do sangue. Ano sim, ano não, uma grande enchente desce, incrustada de cadáveres, revirando o solo de mais uma nação castigada. Atrás de nós está a grande fogueira carbonífera da história humana. Adiante, uma sombra difusa projetada por nossos próprios corpos, encurralados e se agitando no redemoinho. Qualquer um percebe que tem algo de muito errado - que um mal se infiltrou no próprio solo da sociedade - e todo mundo sabe que os poderes e principados deste mundo são os culpados. E ainda assim, nós todos nos sentimos impotentes para executar qualquer tipo de retribuição. Como indivíduos, não vemos nenhum jeito de exercer qualquer influência sobre a trajetória dos eventos e devemos simplesmente assistir enquanto eles nos atravessam. Nos vemos desarmados e sozinhos, encarando um futuro sombrio em que terrores arrepiantes espreitam logo na fronteira de nossa vista, empurrados inexoravelmente para a frente enquanto as correntes chacoalham e os sons atormentados ecoam de volta do mundo porvir.
Porém, com os olhos certos olhando nos lugares certos e nas horas certas, talvez você possa ver a sombra sinistra do futuro rompida por lampejos de uma luz de outro mundo: momentos ofuscantemente brilhantes em que a possibilidade de justiça aparece por um segundo fugaz. A delegacia queima, os trabalhadores transbordam para fora da fábrica, comitês se formam nas ruas e vilas, o governo cai tão suavemente quanto uma pluma, três cápsulas de munição caem como dados - um encantamento gravado em cada uma, como se para conjurar algo maior. Talvez você já tenha sentido. O coração fica leve. Chamas angelicais atravessam a carne e, durante aquele único momento sem fôlego, algo imortal nos habita. A lâmina do meteoro cruza cortando o estômago de um céu sem lua e então nós piscamos e se foi: a Guarda Nacional é chamada, os sindicatos negociam uma volta ao trabalho, os comitês se dissolvem, o presidente deposto é suplantado pelo conselho militar, o CEO morto é substituído por um vivo, e balas da polícia caem das torres de vidro como uma chuva gelada e dura. Mas a luz não pode ser desvista. Como resultado, essa derrota é ela mesma um despertar. Percebemos, lentamente, que o caráter coletivo e expansivo do mal que nos atormenta requer uma forma coletiva e expansiva de retribuição. A vingança social requer uma arma social. O nome dessa arma é o partido comunista.
Conforme a cadência e intensidade da luta de classes aumenta, questões organizacionais são colocadas cada vez mais frequentemente. Elas emergem primeiro como questões imediatas e funcionais, tratando de lutas específicas e aumentando em escala junto delas. Como consequência de uma determinada luta, surgem questões mais amplas de organização, tomando dimensões tanto práticas quanto teóricas. Em termos práticos, a questão geralmente foca na atividade dos partisões leais* que ficam sem um objeto de imediato de fidelidade. Eles expressam uma subjetividade residual esvaziada de sua força de massas. Em termos mais brutos, esses indivíduos são “restos” de uma certa maré alta da luta de classes. Nesse nível, a questão geralmente se coloca como um problema do que esse “nós” fragmentado pode fazer no intervalo entre revoltas. Como resultado, o próprio processo de investigação é atravancado por um zelo frustrado, com debates mobilizados em círculos eviscerantes de recriminação moral motivados mais por um espírito de autopunição do que por qualquer interesse sincero em análise.
Ainda assim, essa mesma linha de raciocínio logo se abre em uma rede maior de investigações relacionadas à “espontaneidade”, à relação entre tendências estruturais (em desemprego, crescimento, geopolítica, etc.) e as prováveis formas de organização que serão adotadas por proletários para além dessa camada de partisões restantes, e, é claro, a como esses partisões podem se engajar com tais organizações. Daqui, a investigação é elaborada e abstraída para suas dimensões teóricas, tornando-se uma “questão de organização” como tal. Ainda que inextricavelmente ligada a teorias mais amplas de como a sociedade capitalista opera e como um mundo diferente deve ser, essa questão de organização também ocupa uma posição liminar, ao mesmo tempo abstrata (como uma teoria da revolução) e conjuntural (como um degrau prático necessário na construção do poder revolucionário). Por si mesmas, cada uma dessas dimensões se deteriora rapidamente: o aspecto necessariamente abstrato se torna um determinismo mecânico em que um único esquema é aplicado a todos os casos (seja o do “grupo de afinidade” ou da “organização de quadros”); enquanto o aspecto necessariamente conjuntural se torna uma forma de inação ativista na qual a própria afobação de atividades “organizativas” locais (geralmente uma combinação de apoio baseado em “problemas”, provisão de serviços e trabalho midiático) é uma forma de desorganização atrapalhando o projeto partisão.
Unificar esses aspectos divergentes requer formas de abstração construídas a partir de momentos conjunturais de revolta e materialmente entrelaçadas com eles. Qualquer discussão sobre organização deve, portanto, acontecer ou numa escala inteiramente localizada - discutindo como essas pessoas podem se organizar nesta situação - ou no agrupamento genérico e sincrético de atos de organização multitudinários que já populam a luta de classes, como experimentada pelos participantes, num esforço de pensar a partir de seus limites e refinar nosso entendimento do que, exatamente, “organização” significa. Aqui, eu espero conectar essas duas funções, apresentando uma intervenção teórica que opera num nível relativamente alto de abstração - informada tanto por estudo cuidadoso quanto por experiência direta dentro das rebeliões que chacoalharam o mundo nos últimos quinze anos - e que foi inicialmente criada como uma intervenção local para ajudar a aprimorar projetos organizacionais específicos que emergiam de rupturas sociais específicas. Em outras palavras, o que segue é uma teoria do partido feita para ajudar a catalisar formas concretas de organização militante.
Conforme emergimos lentamente do longo eclipse do movimento comunista global, nos encontramos em uma situação paradoxal, herdando ao mesmo tempo demais e muito pouco. De um lado, nos foi deixada uma rica, ainda que majoritariamente textual, herança intelectual e de experiência construída por gerações passadas. Mas essa história agora é distante o bastante para se provar muito facilmente romantizada, enquanto programas e polêmicas que um dia foram dinâmicos são congelados em esquemas e as paixões calorosas daquela era são resfriadas para se tornarem uma nostalgia amortecedora. De outro lado, em termos de experiência concreta e mentoria, o longo inverno de repressão nos deixou com nada além de restos dispersos. Os partidos do passado foram todos derretidos no alambique da repressão. As grandes mentes foram quebradas. Traição se seguiu a traição. Os corajosos foram esmagados e os covardes fugiram. Só os mortos continuaram puros em seu silêncio. Assim, nossa geração foi criada na selva, nosso comunismo inculto e selvagem, moldado somente pela força bruta do capital. Como resultado, percebemos agora que qualquer investigação sobre a “questão da organização” é imediatamente dificultada tanto pela superabundância de história muito distante e muito facilmente transformada em fanfics sobrecarregadas, quanto pela falta de instituições vivas que carreguem consigo o espírito incendiário do projeto partisão.
De cara, a questão parece óbvia: o que precisamos é de mais “organização”. Contudo, quando abordada, a definição básica de “organização” se mostra obscura, desaparecendo na própria tentativa de articular o que exatamente se quer dizer. Muitas vezes, a questão serve como um simples porrete. O padrão é familiar: o “teórico” observa retrospectivamente as lutas recentes, diagnostica seus limites óbvios, atribui estes a uma escolha consciente de atores ruins ou inocentes que optaram por formas de luta “horizontais” ou “sem líderes” para seu próprio detrimento, e então prescreve “organização” como a panaceia que deveria ter sida escolhida no passado e deve ser escolhida no futuro. [1]
Ao fazer isso, tais “teóricos” falham, primeiro, em oferecer qualquer imagem verdadeira de como seria a “organização” na situação real em que os rebeldes se encontravam, já que obviamente não havia nenhum exército revolucionário esperando pelos comandos necessários. Mais importante, em sua própria obsessão fanática pelas ideias corretas, eles também falham em compreender a dinâmica mais básica da revolta social, na qual uma forma de inteligência coletiva emerge da ação de massas para além do pensamento de quaisquer participantes individuais ou grupos programáticos de atores políticos.
Ao invés disso, a questão real é completamente diferente. Como qualquer um que participou em qualquer grande rebelião dos últimos quinze anos pode te contar, nunca faltam tais “teóricos da organização”, ou mesmo pequenas formações militantes compostas de “quadros” sensatos operando no meio da revolta, todos defendendo ativamente a sua própria visão de organização ligada a um programa político coerente. Por que, então, ninguém parece se interessar pelo que esses indivíduos estão oferecendo? A razão geralmente é bastante simples: eles não estão oferecendo nada além da palavra “organização” em si, repetida ad infinitum. Ainda que eles próprios estejam convencidos do contrário, tais indivíduos e suas assim chamadas “organizações” geralmente não oferecem nenhuma experiência tática ou conhecimento estratégico concretos e são, assim, incapazes de empurrarem a revolta para além de seus limites e construir formas substanciais de poder proletário. Por essa razão, eles são rapidamente superados pela própria inteligência coletiva da rebelião. Mesmo nos casos raros em que eles têm algo a oferecer, eles falham em se organizar de forma efetiva o suficiente para convencer qualquer um a se importar com o que eles têm a dizer em primeiro lugar. Em outras palavras: eles não têm meios de interagir ou se engajar com a rebelião em geral. [2]
Essa abordagem para a questão da organização é, ela mesma, um sintoma de limites táticos concretos, evidentes na inabilidade das rebeliões de executarem mudanças sociais significativas ou gerarem formas de poder proletário que possam sobreviver para além delas. Mas ela também é retrógrada, tomando organizações programáticas de larga escala que surgiram como resultado de longas décadas de luta revolucionária em períodos anteriores da história como ponto de partida para as lutas de hoje, como se tais entidades pudessem ser revividas por pura força de vontade. O verdadeiro processo de organização é o exato oposto: do meio de lutas e rebeliões de várias intensidades, uma miríade de formas de organização (muitas vezes mal caracterizadas como “espontâneas” ou “informais”) emergem dos quebra-cabeças táticos apresentados à inteligência coletiva dos participantes e, somente quando esse substrato prático de poder popular é formado, formas mais “estratégicas” ou teóricas de coordenação em larga escala e construção de poder podem tomar forma. Em outras palavras, aqueles que adentram a rebelião exigindo que “nós nos organizemos” presumem um “nós” que ainda não existe.
A questão da organização deve primeiro focar em construir uma subjetividade coletiva, não em comandá-la. O ponto de partida da teoria do partido, portanto, não é uma questão de como “nós” devemos nos organizar. Ao invés disso, a questão é dupla: como pode uma forma especificamente comunista de subjetividade revolucionária emergir das lutas distintamente não-comunistas do cotidiano da classe? E como as frações específicas de partisões comunistas produzidas por essas lutas podem intervir de volta nessas condições de forma a elaborar mais profundamente essa subjetividade militante dentro e para além de lutas individuais? A emergência do partido é tanto um processo de agrupamento e aprendizado com a inteligência coletiva da classe no decorrer de conflitos incendiários quanto uma intervenção propositiva ou síntese programática. Ao invés de olhar para as revoltas recentes de forma puramente negativa, entendendo seus limites como emanando de ideias incorretas, a investigação militante vê essas falhas primariamente como limites materiais, expressos taticamente, que também carregam consigo uma força subjetiva propulsiva. Como resultado, elas só podem ser lidas num sentido positivo como um repositório acumulado de experimentação coletiva, ainda que só efetivadas conforme esses experimentos informam os futuros ciclos de revolta.
Os limites táticos que aparecem para conter qualquer ruptura social só podem ser superados por meio da ação, e só a ação elabora o pensamento coletivo. A ação é a interligação necessária entre o pensamento isolado de indivíduos ou grupos e a subjetividade de massas expressa na rebelião mais ampla. Abordagens convencionais para a questão da organização tendem a acreditar que a ação deriva do sentimento moral ou político individual. Essas abordagens são “discursivas” no sentido de que presumem que a ação política é precedida pela proposta intelectual de um certo programa. Em outras palavras, a crença de que pessoas são convencidas a adotar certas ideias políticas por meio da conversa, da polêmica ou da propaganda, e de que essas ideias então acarretam na adoção de certas orientações estratégicas e práticas táticas filiadas. Mas a história demonstra o exato oposto: posições políticas emergem da ação tática, não da imposição discursiva de argumentos morais ou ideológicos.
Assim, colocar o programa em primeiro lugar é retrógrado e, na prática, serve frequentemente como uma forma de desorganização. Na verdade, a organização emerge por meio da superação prática de limites materiais, deixando seus compromissos intelectuais, estéticos e éticos atrás. Em outras palavras, as pessoas não se juntam a organizações, as apoiam ou adotam suas posições políticas, simbologia e disposição geral em massa porque concordam com elas. Elas o fazem porque essas organizações exibem competência e força de espírito. Na teoria militar, esse processo é entendido como uma luta por “controle competitivo” sobre um campo aberto de conflito. [3]
Só depois que essa liderança concreta na ação foi estabelecida é que as pessoas tornam-se receptivas à liderança mais abstrata em programa e princípios. Assim, mesmo se a abordagem propositiva possui um programa teoricamente afiado e praticamente útil, esse programa vai, de qualquer forma, ser incapaz de influenciar o curso dos eventos enquanto seus adeptos não tiverem a habilidade de conduzir as intervenções táticas necessárias para interagir com a inteligência coletiva da revolta.
Além disso, esses programas devem eles próprios serem vistos como articulações vivas de seus momentos políticos. Mesmo suas análises estruturais mais expansivas expressam uma forma de inteligência localizada a um tempo e lugar particulares. Como resultado, eles não só são provisórios, mas devem ser anexados à ação e seguir a partir dela. Esse processo então reformula essas mesmas posições e gera novas formas de pensamento político. A política, dessa forma, se espalha e se elabora por meio dessa interface tática. Realizando atos de coragem que rompem os limites táticos de uma determinada luta, a simbologia de um determinado grupo de partisões pode tomar uma força adicional memética, tornando-se aquilo que eu chamo de insígnia: uma forma flexível e simbólica que comprime e transmite uma certa dimensão da inteligência coletiva da rebelião em uma gramática visual simplificada e, ao fazer isso, alcança uma forma mais expansiva de subjetividade (o partido histórico, explorado abaixo). [4]
Em sua forma mais rudimentar, as insígnias operam no nível estético: coisas como o colete amarelo ou o capacete amarelo das lutas do fim da década de 2010. Em sua forma mais elaborada, elas abrangem certas práticas táticas ou disposições organizacionais transmitidas por um nome ou pacote de práticas mínimas: conselhos de local de trabalho, comitês de resistência de bairros, ocupações de praças públicas, etc. A insígnia molda táticas em formas amplamente replicáveis e oferece uma passagem mínima pela qual os não-iniciados (isto é, aquela parcela da população normalmente considerada “apolítica”) podem entrar no momento da ruptura. A insígnia portanto abre a ação para uma base social de participantes mais ampla, independente da adesão destes a quaisquer pontos de unidade discursivos ou programáticos.
A insígnia assim traça uma forma preliminar de subjetividade coletiva a partir da maré ascendente da história. Ao mesmo tempo ela conjura uma força militante de dentro da classe por meio de seu poder aparentemente oculto e, como ponto de chegada prático orientando táticas concretas, também estrutura essa subjetividade amorfa em formas mínimas de organização. Ainda que memética, a insígnia não é primariamente estética e não depende de nenhum meio técnico para sua propagação. Insígnias só emergem por meio do exemplo tático. Disposições políticas então seguem atrás da insígnia, servindo como a articulação bagunçada e majoritariamente subconsciente desses atos radicais após o fato. Alguém vestindo um capacete amarelo esmaga as janelas do parlamento; o pacote de sentimentos e conflitos políticos associados a esse ato simbólico - neste caso, localismo direitista em Hong Kong - pode então se espalhar por meio de repetição memética, permitindo que os símbolos e práticas associados hegemonizem mais facilmente o espaço estético e tático da rebelião, reforçando ainda mais o carisma de suas respectivas posições políticas. [5]
Uma distinção igualmente importante é aquela entre o projeto partisão, que só pode ser construído a partir de rupturas sociais de larga escala, e formas de luta mais restritas, visíveis no ferver contínuo da luta de classes. [6]
Toda organização comunista deve, por necessidade, se orientar em volta de lutas por subsistência que emergem continuamente na classe, geradas pelas dinâmicas contraditórias da sociedade capitalista. Mesmo que eventos políticos mais expansivos excedam essas lutas - e esse excesso é o verdadeiro local em que uma força subjetiva aparece (ver abaixo) - conflitos iniciais sobre os termos e a aplicação da subsistência ainda estão nas origens desses eventos. Similarmente, essas lutas de subsistência estruturam o campo em que a organização deve persistir no período entre revoltas específicas. Toda organização comunista deve, portanto, ser continuamente capaz de se traduzir em interesses de classe concretos, tomando funções práticas em relação a tanto os termos específicos da subsistência em um determinado momento quanto os métodos específicos pelos quais a subsistência é imposta à classe.
No entanto, os comunistas também devem confrontar lutas de subsistência como um limite a ser superado. Já que as demandas e dificuldades expressas por tais lutas são interesses impostos emanando de identidades que são, em última instância, construídas pelo capital (como é visível na oposição racista ao trabalho migrante, por exemplo), não fazer nada além de defender o bem-estar material (isto é, lutar por ganhos reais para a classe trabalhadora) acaba por extirpar a fidelidade de uma organização comunista ao projeto comunista maior. O pulso incendiário de determinada luta é esgotado por meio das mil pequenas feridas das concessões. Na verdade, a “vitória” em uma luta de subsistência é muitas vezes ela própria uma derrota: o policial assassino é mandado ao tribunal (talvez até declarado culpado), o aumento salarial é conquistado, o projeto destruidor do meio-ambiente é cancelado, a lei controversa é retirada, o presidente renuncia (e o poder passa para o governo “transicional”). De longe, a melhor forma de derrotar um movimento comunista para o partido da ordem é conceder ganhos reais dentro das lutas de subsistência e consolidar esses ganhos sob sua própria bandeira.
Em uma definição ampla, lutas de subsistência são aquelas focadas nos problemas concretos de sobrevivência sob o capitalismo. Ainda que elas operem em múltiplas dimensões, elas podem ser vagamente divididas em lutas sobre os termos de subsistência e lutas sobre a imposição desses termos à população. As primeiras tendem a focar em problemas distributivos relativamente estreitos de acesso a recursos sociais, enquanto as últimas tendem a focar em problemas mais gerais de sobrevivência e dignidade que surgem por meio da distribuição desses recursos.
A primeira categoria, de lutas sobre os termos de subsistência, é quase sempre centrada de algum jeito no nível dos preços. Estas podem ser subdivididas entre lutas sobre o preço de mercadorias gerais (o custo de vida, em especial do aluguel), lutas sobre o preço da força de trabalho (salários, pensões e outros benefícios empregatícios), ou lutas sobre o preço de serviços e recursos proporcionados pelo Estado (bem-estar, infraestrutura, educação). Diferenças institucionais entre as localidades garantem que certos problemas (como assistência médica) estejam de um lado ou de outro, ou abranjam ambos. Picos de preço repentinos ou redistribuições de bens sociais certamente podem iniciar protestos de larga escala, e inflação e corrupção de longa data podem aumentar a frequência de lutas de subsistência. Contudo, como regra, essas lutas são mais facilmente recuperadas pela esfera da política, e só tomam um caráter radical em condições extremas ou quando organizações militantes existem para empurrá-las nessa direção. Por essa razão, sua expressão política tende a um populismo simples focado na restauração de níveis estáveis de preço, presumidos como tendo sido distorcidos por intervenções exteriores (por alguma fração das elites rentistas) no funcionamento outrora eficiente do mercado.
A segunda categoria, lutas sobre a imposição desses termos de subsistência à população, foca na sobrevivência crua e na dignidade na vida e no trabalho. As mais óbvias são os recorrentes protestos em pequena escala contra assassinatos de pobres pela polícia em um determinado bairro (pelo menos aquelas que ainda não são revoltas massivas), lutas abolicionistas contra o encarceramento, protestos puramente locais contra deportações, etc. Mas esses tipos de luta também se intercalam com os outros. No local de trabalho, por exemplo, lutas sobre os termos de subsistência são frequentemente menos motivadas pelo seu objetivo imediato (de, digamos, aumento salarial), e mais por uma oposição a gerentes autoritários, ou a um tratamento diferente devido a raça ou status de migração dentro da empresa. Tais conflitos são muitas vezes as questões mais incendiárias no chão de fábrica, como qualquer um que já organizou um local de trabalho sabe. Similarmente, quando lutas sobre os termos de subsistência são respondidas com violência policial, elas imediatamente se tornam lutas contra a própria imposição desses termos à população. Essas lutas, portanto, são mais amplas do que aquelas do primeiro tipo, rapidamente tomando características mais abertamente políticas e frequentemente expressando a si mesmas como lutas contra a dominação em si.
Diferente de lutas sobre os termos de subsistência, que muitas vezes podem ser previstas pelos movimentos na política e no nível dos preços, lutas contra a imposição desses termos à população são muito difíceis de prever. Para além da compreensão geral de que tais lutas vão eclodir mais facilmente em certas áreas e entre populações sujeitas à abjeção extrema, e que vão se espalhar mais efetivamente quando um caso particular é publicizado, é difícil dizer, por exemplo, quando um assassinato policial vai levar a um protesto, e efetivamente impossível afirmar quando vai levar a uma revolta generalizada que excede então os seus limites iniciais. Como regra, porém, essas lutas são mais difíceis de recuperar por via das instituições existentes e são mais facilmente propagadas, já que a sua própria supressão acende novas revoltas.
Confluências particulares de lutas de subsistência servem como o campo em que revoltas de massa emergem, que então vão exceder esses limites iniciais e assim cessar de meramente expressar estas lutas de subsistência subjacentes. Ainda que ambos os modos de luta de subsistência exerçam seus papéis aqui, é geralmente o segundo tipo que age como gatilho imediato. Os atuais protestos na Indonésia são um bom exemplo: o ferver contínuo de lutas sobre os termos de subsistência (custo de vida, distribuição estatal de recursos, acesso a empregos, etc.) proveram o conjunto de queixas básicas para um conjunto de protestos inicialmente limitados. Estes então explodiram numa revolta massiva da juventude depois que a polícia matou descaradamente um entregador e então suprimiu os protestos seguintes, resultando em ainda mais mortes. Ainda assim, mesmo lutas agressivas contra a imposição dos termos de subsistência existem dentro dos mesmos limites de qualquer luta de subsistência, expressando interesses concretos que podem então ser cooptados pelo partido da ordem. [7]
Qualquer reivindicação, por qualquer partido, de possuir o único e verdadeiro caminho para a revolução é obviamente risível. Revoluções não são monocultura, nem na teoria e nem na prática. A única coisa que deveria unificar comunistas, então, é uma oposição estrita ao sectarismo e a quaisquer pretensões de certeza. Nossa prática deve ser ecumênica e experimental desde o início, cultivando, agrupando e catalisando diferenças que então são colocadas numa constante conversa uma com a outra. Só flexionando abordagens heterogêneas na direção de nossos esforços é que podemos esperar a geração de novas soluções para a miríade de limites intelectuais e táticos que confrontam qualquer processo revolucionário. Isso requer manter uma postura de abertura a correntes apolíticas ou antipolíticas, assim como àquelas cuja expressão estilística ou tonal de política difere da nossa, ao invés de transformar de forma atrapalhada tais diferenças estéticas em supostas críticas políticas.
Ao mesmo tempo, o ecumenismo não é equivalente ao ecletismo. E experimentalismo não é o mesmo que romantizar a novidade. O ponto não é simplesmente “emprestar o que é útil” de uma determinada fonte para criar uma alegre colcha de retalhos de ideias radicais, nem se obcecar por uma “nova” tática ou disposição na luta (quase sempre antiga, na verdade), mas, ao invés disso, tomar e integrar verdades fragmentárias em uma ideia comunista multitudinária mas ainda assim coerente, compartilhada em termos gerais por todos os partisões, cada um elaborando o mesmo projeto básico em múltiplas dimensões. O comunismo é coerente por meio da própria diversidade de expressões que o compõem. Mas essa diversidade requer, como base, que essas expressões ainda assim circulem no entorno de um conjunto de condições mínimas, da mesma forma que um pêndulo oscila no entorno de um nítido (mas também virtual ou emergente) centro de gravidade. Simplificando o máximo possível, essas condições podem ser resumidas como: a crença de que o objetivo de tal projeto é a criação de uma sociedade planetária operando de acordo com princípios de deliberação, não-dominação e livre associação, utilizando as vastas capacidades (científicas, produtivas, espirituais, culturais, etc.) da espécie humana para reabilitar seu metabolismo com o mundo não-humano.
Essas condições mínimas então se desdobram em uma série de questões e conclusões mais profundas a serem elaboradas por meio do próprio projeto partisão. Por definição, qualquer sociedade operando de acordo com esses princípios deve abolir a dominação indireta ou oculta enraizada no valor como forma social (incluindo o dinheiro, os mercados, salários, etc.) e as formas de identidade legais e ilegais que derivam dela (isto é, o status de “cidadão” de um “país” com direitos especiais), assim como formas diretas de dominação expressas no Estado, na inclusão mandatória dentro de unidades familiares autoritárias, em práticas costumeiras patriarcais ou xenofóbicas, etc. Similarmente, já que implica em uma transição de fases entre formas fundamentalmente diferentes de organização social, o comunismo deve emergir de uma quebra revolucionária com o velho mundo e não se pode se aproximar dele lentamente pelos meios evolutivos da reforma gradual e do desenvolvimento das forças produtivas. Disso segue talvez a linha divisora mais importante: aquela que separa os comunistas de todos aqueles que temem, dispensam ou tratam como infantil o comportamento desordeiro da multidão no momento da revolta, preferindo táticas ordeiras e “pacíficas” de protesto ou uma forma mítica de disciplina militante, como se insurreições fossem operações militares cirúrgicas e não levantes bagunceiros das massas.
Na superfície, isso parece apresentar um paradoxo: se tomamos unidade como sinônimo de uniformidade e portanto o oposto completo de diversidade ou diferença, essas condições tomariam um caráter exclusivo contrário ao espírito do ecumenismo. Mas o que é proposto aqui não é uma unidade estrita ou superveniente que se sobrepõe e homogeneiza todos os elementos subsidiários, mas somente uma medida necessária de coerência. Enquanto essas condições mínimas devem ser cumpridas para garantir um ambiente ecumênico que permita a proliferação de ideias verdadeiramente comunistas, esse processo de restrição é ao mesmo tempo gerativo. Sem tal cumprimento, ideias “radicais” ou “esquerdistas” não-comunistas mais próximas do senso comum da ideologia popular rapidamente vão desgastar qualquer conteúdo comunista. Ainda que vá ser importante permanecer em conversa com essas correntes vagamente “socialistas”, “abolicionistas” ou “ativistas” - já que suas próprias contradições tendem a levar uma minoria de participantes mais inteligentes na direção do comunismo - é ainda mais importante permanecer em distinção delas, se recusando a liquidar o projeto comunista nesse liberalismo radical tépido. Isso então nos habilita a estabelecer a fundação para nossa própria experimentação, permitindo a partisões comunistas tentarem diferentes formas de intervenção e engajamento e então agruparem os resultados de forma lúcida.
Quando falamos de organização comunista, não estamos falando de organização em geral. Ainda que várias teorias da organização em si - derivadas da cibernética, biologia, ou até exemplos das estruturas de coordenação usadas em configurações corporativas ou militares - serão obviamente informativas, a elas também falta uma característica necessariamente transcendente: a orientação partisana a uma ideia. O partisanismo requer uma teoria não apenas de organização mas de organização partidária especificamente. Além disso, para comunistas, é uma questão que só pode ser formulada através de uma “teoria” do partido elaborada na prática: continuamente construída a partir das lições práticas aprendidas em longas histórias de conflito de classe, e sempre reintroduzida nesse conflito para ser testada e aperfeiçoada. Embora essa teoria possa, a qualquer momento, ser agrupada e articulada por pensadores específicos, ela expressa em última instância uma herança coletiva reaprendida e reinventada através da ação da classe.
Em um alto nível de abstração, nós podemos quebrar a teoria do partido em três conceitos distintos, mas ainda assim interrelacionados. O primeiro desses, o partido histórico, é também o mais abrangente, englobando a soma das formas de revolta de escala massiva aparentemente espontâneas emergindo dos conflitos sobre os termos de subsistência. Sobre ele é falado no singular: existe um único partido histórico fervilhando por baixo da sociedade capitalista em todos os locais e eras, apesar de que se torna visível apenas quando aflora. Marx também se refere a isso como o “partido da anarquia”, já que é tratado dessa forma pelo “partido da ordem” que tenta suprimi-lo, e pelo “anti-partido” que tenta excluí-lo inteiramente. [8] Esse partido é sempre ao menos vagamente rastreável no fervilhar dos conflitos de subsistência. Apesar disso, conflitos de subsistência em si mesmos não expressam um conteúdo comunista, e não assumem o caráter partisão “naturalmente”. Muito pelo contrário: lutas por subsistência tendem a expressar os interesses determinados de identidades socialmente esculpidas e, como resultado, seu caminho mais provável é o de desenvolver demandas representativas relativamente limitadas que, mesmo que expressas através de “movimentos sociais populares”, operam inteiramente dentro da política convencional: fazendo petições por reformas para poderes existentes, apelando para o sentimento público, e até impondo os interesses isolados de um segmento da classe contra outros.
Lutas por subsistência por si mesmas são melhor entendidas como formas expressivas da consciência política, na qual a “subjetividade” é reduzida a mera representação do lugar social. Por contraste, o horizonte emancipatório visível no movimento do partido histórico emerge apenas no excesso de representação, mesmo que surja necessariamente de um local social específico (i.e., a partir dos conflitos distintos e peculiaridades do arranjo de poder daquele lugar). A subjetividade revolucionária é a elaboração de uma universalidade prática em tensionamento com suas próprias condições de emergência. [9] Portanto, a existência do partido histórico é mais aparente quando as lutas por subsistência atingem certa intensidade, momento no qual assumem um caráter auto-reflexivo que transborda os limites das suas queixas iniciais. Em termos convencionais, esse é o ponto no qual lutas individuais se tornam múltiplos levantes de “massas”. Essas rupturas sociais excessivas podem então também se tornar singularidades políticas, ou o que o filósofo político Alain Badiou chama de “eventos”, que distorcem o tecido do que parece possível em um dado local e assim remodelam as coordenadas da paisagem política como consequência. [10]
Sozinho, o partido histórico é uma força não-tão-subjetiva. Apesar de certamente gerar formas de “consciência de classe”, o partido histórico por si mesmo opera em um nível melhor descrito como a subconsciência da classe. Portanto, ele muitas vezes parece incipiente, impenetrável e reativo. Além disso, a intensidade de uma determinada reação é frequentemente extremamente difícil de prever. Por exemplo, assassinatos policiais acontecem o tempo todo, mas só em alguns casos - em essência idênticos aos outros - invocam levantes de massa. No entanto, o movimento do partido histórico também está obviamente conectado a tendências estruturais de longo prazo em um dado local e na sociedade capitalista como um todo. Na verdade, nós podemos pensar nele como sendo impulsionado para a frente pelas tensões inerentes entre identidades socialmente existentes (a “consciência política” anti-emancipatória de lutas por subsistência e movimentos sociais) e sua sobre-expressão excessiva no evento.
Isso corresponde aos fluxos e refluxos do partido histórico, que são determinados pela confluência dessas tendências objetivas e sua elaboração subjetiva no conflito de classes, e também por sua invariância. As leis fundamentais da sociedade capitalista não mudam, e as crises e a luta de classes são os meios através dos quais essa sociedade se reproduz. Por esse motivo, lutas por subsistência sempre vão surgir e, combinadas em uma certa taxa e intensidade sempre vão tender a transbordar seus próprios limites, gerando eventos políticos nos quais o partido histórico se torna visível. Através de seu conflito com o mundo existente, o partido histórico projeta, então, uma imagem do comunismo no negativo.
Essa imagem é invariante em dois sentidos. Primeiro, já que a lógica social básica da sociedade capitalista não se altera, as condições mínimas para sua destruição também se mantêm as mesmas. Podemos pensar nisso como uma invariância “teórica” ou “estrutural”. Segundo, o processo através do qual a subjetividade revolucionária toma forma também é invariante, nele comunistas sempre vão enfrentar os mesmos dilemas centrais, sempre vão dar de frente com respostas similares pelas forças da ordem social, resultando em um campo estratégico que é, de maneiras fundamentais, idêntico ao daqueles confrontados por forças revolucionárias no passado. Podemos pensar disso como uma invariância “prática” ou “subjetiva”.
A desapropriação na raiz da existência proletária, e tornada aparente nas lutas por subsistência do cotidiano, junto da possibilidade de um poder proletário feito aparente no excesso político do evento, desse modo se juntam para criar uma imagem potencial, virtual ou espectral do comunismo que é sempre visível para certos participantes e não para outros, devido a algumas combinações de circunstância e temperamento. Ao delinear os limites de um dado conflito, esses participantes se encontram elaborando um maior padrão, princípio ou verdade: a ideia invariante de comunismo. Por essa mesma razão, eventos se abrem diretamente em uma certa dimensão do absoluto, juntando levantes de tempos e lugares muito diferentes na mesma eternidade que é em si mesma uma reflexão no presente do futuro comunista potencial.
Partidos formais representam tentativas de elaborar esse padrão dentro e para além dos eventos, gravando aquela ideia invariante na matéria efêmera de assembleias auto-conscientes de indivíduos. Dos partidos formais se fala no plural: existem sempre múltiplos partidos formais operando simultaneamente, cada um procurando caminhos de acordo com seu próprio método de navegação estimada e então elaborando o padrão ou princípio em direções distintas que frequentemente lutam uma contra a outra.
Nunca se pode dizer que um partido formal opera como “a vanguarda” da classe como um todo. Contudo, assim como a crista das ondas representa um movimento fluído mais profundo abaixo, o partido histórico sempre vai gerar seus próprios destacamentos avançados. Qualquer partido formal tem o potencial de servir como uma das muitas vanguardas do partido histórico. Essas vanguardas frequentemente operam ao longo de diferentes dimensões: alguns partidos formais expressam um entendimento teórico mais avançado e compreensivo, enquanto outros expressam conhecimentos táticos mais refinados, ou simplesmente permitem que seus espíritos brilhem com força em batalha, cada ato de bravura acendendo um novo sinal de fumaça para atrair a classe para seu fadado combate.
Esses partidos geralmente emergem do excesso auto-reflexivo do evento, apesar de também poderem aparecer em períodos intercalados sob formas fracas, particularmente quando o nível médio de subjetividade partisana está alto. Na raiz, um partido formal passa a existir sempre que grupos de indivíduos se juntam para, de forma auto-consciente, expandir, intensificar e então universalizar um evento. Partidos formais também frequentemente vivem mais que o ascenso do partido histórico e, em períodos intercalados entre rupturas sociais, podem tentar elaborar a verdade coletiva desvendada pelo evento, preparar para ascenso futuros, ou (se eles têm a capacidade) intervir de volta em condições prevalecentes para fazer a emergência de eventos futuros mais provável e para garantir que eles têm uma maior probabilidade de superar limites prévios. Nesse sentido, partidos formais expressam uma forma fraca ou parcial de subjetividade, ou, mais precisamente, o processo inicial e titubeante através do qual o sujeito revolucionário é gestado.
A vasta maioria dos partidos formais são agrupamentos pequenos e orientados à prática que tem um caráter “tático” ou prático, comumente surgindo de coletivos funcionais provisórios formados no meio de algum conflito: um comitê organizador em uma onda de greves, a cozinha compartilhada em uma ocupação, grupos da linha de frente engajando em confrontos turbulentos com a polícia, coletivos de estudo e pesquisa formados para entender melhor o conflito, ou várias associações de moradores que surgem invariavelmente no meio de uma insurreição. Mas partidos formais também podem ser maiores, mais explicitamente políticos, e até “estratégicos” em sua orientação, desde que eles retenham esse aspecto militante. Grupos táticos que não se dissolverem vão tender a essa direção. Como resultado, eles até podem evoluir para nominais “partidos comunistas”, cada um expresso como o partido comunista de algum lugar e frequentemente em contraste a outros “partidos comunistas” sobrepondo-se.
Mesmo que soe como uma charada, partidos formais existem queiram eles reconhecer que existem ou não. Ou seja, partidos formais também descrevem agrupamentos “informais” que podem não pensar a si mesmos como “organizações” coerentes. Por exemplo: grupos de amigos que se juntam toda noite no meio da luta, subculturas que participam no ascenso e são subsequentemente destroçadas pelo seu desfecho, e é claro, os vários “grupos de afinidade” e “organizações informais” que ironicamente tendem a ter algumas das mais rigorosas formas de disciplina e refinadas estruturas de comando. Independentemente de sua suposta “informalidade” esses grupos de fato operam de acordo com formalidades de costume, carisma e a simples inércia funcional.
A diferença entre grupos “informais” e “formais” não é se eles são ou não partidos formais (ambos são), mas o grau no qual essa formalidade é uma característica explícita e autodeclarada da organização. Similarmente, seu aspecto partisão - o comprometimento em elaborar a verdade coletiva do evento em geral e superar os limites de um determinado evento - não tem nada a ver com suas declarações programáticas. Partidos formais são na verdade testados, e perdem ou retém seus status como organizações partisanas, quando confrontados com novos eventos políticos. Tais eventos demonstram se aquele partido manteve sua fidelidade ao projeto comunista, por criar as condições nas quais sua atitude e comportamento podem ser testadas contra a “anarquia” desencadeada por um dado levante. Ele sequer se engaja com a nova revolta? Se sim, sua forma de engajamento tende a divergir daquela revolta em direção a caminhos mais conservadores? Ou ele cumpre uma função prática ajudando a empurrar essa revolta para além de seus limites?
Caso seja percebido como insuficiente, o antigo partido formal é reduzido: não mais um partido sequer, mas em vez disso uma mera organização ou pior, um órgão operacional do partido da ordem, ou do anti-partido. Esse é um dos motivos para o partido formal ser sempre efêmero. Enquanto grupos funcionais e geralmente formados ao acaso, partidos formais muitas vezes se auto-liquidam quando não são mais necessários, ou mudam de forma, evoluindo de grupos táticos unidos no meio de um levante para uma cena social mais amorfa na sequência. Enquanto isso, organizações maiores frequentemente mantêm a aparência de ser um partido formal apenas para completamente falharem o teste do evento propriamente dito, ponto no qual elas se recolhem na escuridão, lavadas pelas marés da história ou endurecidas, virando nada além de um secto cultista que não cumpre nenhuma função prática. Por essa mesma lógica, organizações preexistentes podem assumir de repente funções militantes e portanto se tornarem partidos formais, quer elas tenham sido explicitamente políticas antes do levante (grupos abolicionistas, sindicatos, sociedades de ajuda mútua) ou apenas marginalmente políticas (torcidas organizadas, igrejas, organizações de ajuda humanitária).
No entanto, a “descamação” de partidos formais ossificados é em si mesma produtiva, já que futuros partidos formais emergem então através de sua oposição a esses órgãos ossificados e ao fazer isso, expressam formas mais avançadas de subjetividade. Por essa razão, partidos formais recentemente liquidados e ossificados formam algo como o solo do qual formas complexas de vida política podem emergir. Entender essa complexidade requer, portanto, distinções mais minuciosas entre diferentes formas de organização em si (em particular as organizações apolíticas e pré-políticas com maior tendência de assumir características militantes no meio de um evento, ou as mais úteis para os partisões interagirem) e entre diferentes espécies do partido formal: aquele que é puramente tático e formado ao acaso, o grupo militante “informal”, o grupo militante “formal”, o sindicato radical, a milícia de auto-defesa, o suposto “exército popular”, o nominal “partido comunista”, etc.
A forma atômica da organização partisana é o que eu chamo de “conclave comunista.” Comunistas são produzidos no meio de eventos políticos, e frequentemente emergem sozinhos ou, na melhor das hipóteses, em grupos muito pequenos. De forma similar, comunistas frequentemente se encontram um ao outro no meio de conflitos e começam a se coordenar de maneira informal. Esses pequenos grupos de comunistas podem ser chamados de “conclaves”, dado seu aspecto privado e de certa forma ritualístico, e, é claro, pelo fato de que estão organizados em fidelidade a um projeto transcendente. Em qualquer lugar que dois ou três se juntam enquanto comunistas existe um conclave, independente de se entenderem assim ou não. Conclaves operam principalmente através da afinidade. Alguns então elaboram essa afinidade em divisões mais formais de trabalho ou em subculturas informais maiores. Frequentemente, conclaves servem como a semente para partidos formais mais elaborados.
No entanto, mesmo quando projetos militantes formais emergem, conclaves persistem dentro e através deles. Essas conexões de afinidade informal são elas mesmas importantes partidos formais. Elas servem para abranger a divisão entre organizações partisanas e não-partisanas, e para prover resiliência e redundância quando organizações formais tensionam e se fragmentam. Em outras palavras, partidos formais menores vão sempre existir dentro do corpo de partidos formais mais complexos. Informalidade e formalidade, espontaneidade e mediação, opacidade e transparência não são opostos. Nem mesmo podem ser privilegiados um sobre o outro, nem totalmente eliminados. Conclaves secretos vão (e devem) existir dentro de organizações comunistas formais com associação transparente, e conclaves ainda mais secretos vão existir dentro do conclave.
Teoria, invenção tática, e camaradagem são moldadas nesses espaços escuros e íntimos antes de serem elaboradas em espaços mais abertos através da discussão aberta, debate e experimentação. Ainda que um conclave possa ser visível de fora, ele ainda se mantém uma instituição relativamente opaca. Por um lado, isso sempre representa uma ameaça à organização maior, enquanto permite esquemas de bastidores e tomadas de poder sigilosas. Por outro lado, essa privacidade é exatamente o que permite ao conclave ser experimental e criativo. Partidos formais mais complexos devem ser planejados para se proteger contra, enquanto acomodam a persistência de partidos formais relativamente opacos dentro de si mesmos e, idealmente, utilizar esses órgãos como uma fonte de vitalidade. Embora esses conclaves possam ser potencialmente integrados em correntes [caucuses] ou facções nas organizações maiores, eles não são sinônimos, e estão muitas vezes alinhados através de fatores circunstanciais (tais como uma experiência compartilhada em um conflito) em vez de um acordo teórico. Eles então precedem esse trabalho faccional mais público, e uma única corrente [caucus] provavelmente inclui múltiplos conclaves.
O partido comunista emerge através da interação entre o partido histórico e os vários partidos formais que ele gera, abrangendo e excedendo ambos. Eventualmente, alguma combinação de fatores estruturais causa uma maior turbulência dentro do partido histórico. Enquanto isso, a fraca ou parcial força subjetiva dos vários partidos formais, juntos por vontade ou circunstância, é eventualmente capaz de intervir de volta em condições circundantes para melhor revitalizar o partido histórico que os pariu. O resultado é uma forma emergente de organização operando em uma escala inteiramente diferente daquelas dos levantes coincidentais do partido histórico ou das atividades improvisadas, táticas e largamente localizadas (mesmo em larga-escala) dos partidos formais. O partido comunista é único, mas numeroso.
Enquanto um ambiente expansivo de cada vez maior militância organizada, o partido comunista nunca é o nome de algum “Partido Comunista” oficial em particular, operando em algum lugar do mundo. Apesar de muitos desses partidos comunistas “com letra maiúscula” serem elementos importantes do partido comunista “com letra minúscula”, ele não pode ser reduzido a eles. Além disso, é sempre um grande erro estratégico tentar subordinar o partido comunista como tal aos interesses de um único Partido Comunista (mesmo que esse Partido Comunista venha a representar algum levante revolucionário local). O partido comunista é talvez melhor pensado como uma forma de “meta-organização” que tanto permite a elaboração de partidos formais como estimula a vitalidade do partido histórico que cresce por baixo. Portanto, é possível falar do partido comunista como um “ecossistema” militante, de certa forma, na medida em que a interação do partido histórico e os vários partidos formais enraizados nele criam um território militante que então, como meio para a organização subsequente, apresenta seus próprios incentivos e limitações emergentes.
Mas essa imagem do partido como “ecossistema” é, na verdade, ideológica. Acima de tudo, a metáfora do ecossistema é privilegiada na filosofia política liberal por sua lógica supostamente “horizontal”, o que parece replicar as (também supostas “horizontais”) operações do mercado. E, nesse caso, ela simplesmente não registra a imagem total: o partido comunista não é um ecossistema de conflitos se alastrando cegamente ao longo da história. É na verdade o ponto no qual a fraca subjetividade visível no partido formal se transforma em uma subjetividade forte e adequada para a tarefa da revolução. Essa subjetividade revolucionária abrange necessariamente organizações individuais e é em si mesma organizada, intencional, relativamente autoconsciente (ainda que isso dependa da posição de alguém dentro dela), e desigualmente distribuída em sua geografia e demografia.
O partido comunista tem sido descrito, tradicionalmente, com o linguajar muito vago de um “movimento comunista internacional” e as expressões muito restritas de uma dada “internacional”, sendo então atribuída com algum status ordinal na sequência histórica. Em última instância, ele é melhor entendido como estando em algum lugar entre o amorfismo de um ecossistema ou movimento e a estrutura rígida em forma de seções das várias iterações das internacionais formais, federativas. Mas ele também é mais expansivo do que ambos na medida em que suas reais capacidades organizacionais estão fora tanto do amplo “movimento comunista” quanto das federações estreitas de “Partidos Comunistas”, e são medidas ao vez disso por sua relação com as associações conciliares ou deliberativas específicas que emergem da classe no meio de uma insurreição, que então começam a tomar medidas comunistas, compelidas ou não a fazer isso, formando portanto as comunas que (caso sobrevivam) vão servir como o coração e motor da sequência revolucionária. No entanto, comunas só podem emergir quando o circuito entre os partidos formais e o partido histórico está bem estabelecido, criando um ambiente subjetivo no qual formas deliberativas, expropriativas e transformativas de associação livre se tornam uma consequência orgânica da atividade de classe.
Como o evento, o partido comunista pode emergir, cair em declínio, e então emergir novamente em um tempo futuro — mas é sempre o mesmo partido comunista, amarrado às suas instâncias anteriores por um fio vermelho. Seu crescimento em extensão (geográfica, demográfica) e intensidade (organizacional, teórica, espiritual) é em si mesmo a onda de revolução que inicia o processo de construção comunista. Similarmente ao partido formal, o partido comunista pode parecer se ossificar, cair em desuso e abandonar sua fidelidade ao projeto comunista, como quando os partidos social-democratas da Segunda Internacional se degeneraram em reformismo estadista e belicismo. Em tal situação, no entanto, o partido comunista não está se ossificando mas sim sendo eclipsado. Tal eclipse pode ser causado por inúmeros fatores, mas está sempre marcado pela falha dos partidos formais que compuseram o partido comunista em manter sua fidelidade ao projeto comunista. Por esse motivo, o ressurgimento explosivo do partido comunista é frequentemente elaborado contra esses remanescentes ossificados, como quando a Terceira Internacional emergiu de uma série de motins, insurreições e revoluções que inicialmente buscaram emular a construção partidária da Segunda Internacional mas que no fim foram forçados a se elaborarem em oposição a essa herança.
O partido comunista tem estado eclipsado por um longo período e, embora sinais apontem para o seu ressurgimento, ainda não se pode dizer que ele existe de alguma forma substancial. Novamente: o partido como tal não é apenas a forma de atividade “de esquerda” em um dado momento, mas sim uma forma de supra-subjetividade que subsiste apenas no confronto incendiário com o mundo social predominante, servindo como a passagem através da qual o comunismo pode ser elaborado como uma realidade prática. Em vez de uma agregação sem sentido de vários interesses menores em um sistema complexo, portanto, o partido comunista representa o florescimento materializado da razão humana, necessário para que a espécie administre de forma autoconsciente sua própria estrutura social, o que é ao mesmo tempo seu metabolismo social com o mundo não-humano. [11] É por isso que podemos falar do partido comunista como o cérebro social do projeto partisão, e até mesmo como a câmara de gestação da própria sociedade comunista.
O partido comunista portanto é eterno, no sentido de que é a forma larval de um corpo imortal: o desabrochar da razão e paixão em toda uma espécie autoconsciente, coordenando conscientemente sua própria atividade enquanto um sistema geosférico. [12] Em outras palavras, o partido comunista é a única arma capaz de realmente destruir a sociedade de classes — anulando o conflito de eras entre igualitarismo simples e dominação social ao subsumir ambos a um princípio maior de prosperidade — e também é, através dessa mesma destruição, o veículo por meio do qual a verdade revelada pelo partido histórico e elaborada pelos numerosos partidos formais floresce em uma era completamente nova de existência material, que sustentará um metabolismo social racional em escala planetária.
* Utilizamos aqui a tradução “partisão” para “partisan”, pois acreditamos que “militante” ou “partidário” expressam um caráter de filiação formal a uma organização, que não corresponde a muitos dos usos da palavra no texto.“Partisão” busca englobar, assim, desde o indivíduo/grupo recém-saído de uma experiência de luta em uma revolta de massas e ainda não “organizado”, até o militante de determinada organização já estabelecida. Em alguns poucos casos, onde essa abrangência não foi julgada necessária, usou-se a tradução “militante”.
[1] Para uma crítica similar dessa abordagem, aplicada a um exemplo concreto, ver: Jasper Bernes, “O que é que devíamos ter feito? Revolução e protestos nos anos de 2010”, Brooklyn Rail, junho de 2024. Tradução do Coletivo Ruptura disponível aqui.
[2] Talvez seja mais esclarecedora a questão de por que, mesmo quando esses indivíduos e suas organizações ostensivamente “ganharam o poder” por meio de eleições após a revolta (como são os casos do Syriza, Podemos, ou o governo Boric no Chile), eles então falharam completamente em pôr em prática qualquer mudança social significativa. Na verdade, a canalização da revolta popular para campanhas eleitorais quase universalmente serviu como uma força supressiva, ajudando a desintegrar as escassas formas de poder proletário que emergiam por fora da esfera institucional. Isso ocorre independentemente de predileção política ou do intuito de qualquer líder individual.
[3] Para uma visão geral da ideia, ver: David Kilcullen, Out of the Mountains: The Coming Age of the Urban Guerrilla, Oxford: Oxford University Press, 2015, p.124-127.
[4] O conceito da “insígnia” é uma elaboração do “meme com força” desenvolvido por Paul Torino e Adrian Wohlleben em seu artigo “Memes with Force: Lessons from the Yellow Vests” (Mute Magazine, February 26, 2019, disponível aqui) e mais expandido em Adrian Wohlleben, “Memes without End,” Ill Will, May 17, 2021 (disponível aqui).
[5] O uso de um exemplo tirado da direita não é coincidência aqui, dado que organizações de direita se provaram particularmente adeptas a implementar essa lógica nas várias décadas anteriores. Uma razão para a ascensão da direita é precisamente porque esse tipo de liderança é frequentemente recusado logo de cara por aqueles na “esquerda”, que o tratam como uma imposição inerentemente autoritária no momentum espontâneo da classe, ao invés de uma dinâmica autorreflexiva produzida por meio daquele próprio momentum. O momento fugaz assim é perdido, e as insígnias são deixadas queimando sozinhas. Eu exploro as ramificações desse problema para a política nos EUA em Hinterland: America’s New Landscape of Class and Conflict (Reaktion, 2018) e examino o mesmo dilema em Hong Kong nos capítulos 6 e 7 de Hellworld: The Human Species and the Planetary Factory (Brill, 2025).
[6] O projeto partisão refere-se às tentativas contínuas de organizar alguma forma de subjetividade revolucionária coletiva orientada para objetivos comunistas. Em outras palavras, ele faz referência a tanto o passado quanto o futuro da luta pela emancipação da humanidade dos grilhões da sociedade de classes e inauguração de um futuro comunista. Dessa forma, é vagamente um sinônimo de “organização comunista” ou “movimento comunista”.
[7] Mesmo dentro de levantes políticos que excederam os limites da subsistência expressos na forma de interesses concretos, uma tensão ainda persiste entre esse excesso e suas bases expressivas. Explorar essa tensão em favor do expressivo é como essas rupturas políticas são suprimidas e reabsorvidas pelo status quo.
[8] Marx fala do “partido da Anarquia’ e do “partido da Ordem” em um conjunto de artigos escrito para a Neue Rheinische Zeitung (Nova Gazeta Renana) em 1850, que seria posteriormente transformado em um livro, As Lutas de Classes em França de 1848 a 1850, por Engels em 1895. Na versão do livro, os termos aparecem no Capítulo 3. Os mesmos termos reaparecem em trabalhos subsequentes, como O 18 Brumário de Louis Bonaparte. O “anti-partido” é uma adição minha, introduzida em Hinterland (trechos disponíveis aqui).
[9] Esse quadro teórico é delimitado a partir do trabalho do filósofo político Michael Neocosmos. Ver seu Thinking Freedom in Africa: Toward a Theory of Emancipatory Politics, Wits University Press, 2016.
[10] Contudo, a natureza simultaneamente universal e aleatória do evento também significa que esse embaralhar de coordenadas ainda é difícil de descrever. Por exemplo, é claro para qualquer observador que “tudo mudou” depois da revolta por George Floyd, e ainda assim todos nós teríamos dificuldade em explicar como exatamente as coisas mudaram, ou de apontar para qualquer caso em particular.
[11] Para uma elaboração mais aprofundada dessa ideia, ver: “Forest and Factory: The Science and Fiction of Communism” por Phil A. Neel e Nick Chavez, Endnotes, 2023. Disponível aqui.
[12] De forma mais rigorosa: a auto-atualização da “espécie” enquanto sujeito, para além de seu status enquanto um fato aparentemente biológico que, na verdade, expressa a unidade material da atividade produtiva humana na sociedade capitalista. Essa é a realização, na prática, do que o geólogo soviético Vladimir Vernadsky (que popularizou o termo “biosfera”) uma vez se referiu especulativamente como a “noosfera”. A ideia é explorada em mais detalhes em Neel, Hellword, Capítulo 2.