Tradução - A interminável crise peruana e nossas tarefas (Perspectiva Socialista)

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fotografia de um manifestante no Paro Nacional de 14 de maio

Fotografia de um manifestante no Paro Nacional de 14 de maio. Fonte: página do Facebook da Radio Soberanía Cbba.

Nota de tradução*

por Grupo Comunista Antípoda

Tempos de crise, se por um lado têm como característica a violência burguesa contra o proletariado, frequentemente produzem também a reação deste último contra a deterioração de sua condição de vida. Os confrontos entre os manifestantes e a polícia nas diversas manifestações do Peru expressam isso, e foram as notícias dos que aconteceram no Paro Nacional de 14 de maio que nos motivaram a traduzir esse texto.

O Paro Nacional foi uma paralisação a que aderiram profissionais dos transportes, comerciantes, mototaxistas, estudantes e vítimas dos massacres de 2022-23. De acordo com o jornal Infobae, foi motivado pelo assassinato, em abril, de 13 mineiros na província de Pataz [1], feito pelo crime organizado e ignorado pela polícia, com a descoberta e a informação da tragédia às famílias sendo realizadas pelos próprios colegas de trabalho dos falecidos. À época, o (agora ex-) ministro Gustavo Adrianzén afirmou: “Sobre o suposto sequestro de trabalhadores em Pataz, dizia-se que pertenciam à mineradora Poderosa. A própria empresa descartou que se trate de seus trabalhadores.” [2]

As vítimas trabalhavam na R&R, que mantém contratos de exploração com a mineradora Poderosa, empresa que tem conflitos com organizações associadas à mineração ilegal. Isso é indicativo de um fato muito importante apresentado no texto traduzido aqui: de que a crise peruana tem origem no conflito entre os setores burgueses formal e transnacional de um lado e informal e emergente do outro. Como esse próprio caso exemplifica, as principais vítimas desse conflito têm sido a classe trabalhadora; nele, a burguesia informal foi o carrasco e a burguesia formal “lavou as mãos” junto do Estado. 

Justamente por isso, os trabalhadores não podem identificar seus interesses com os de nenhum desses setores. Afirmar isso de forma inequívoca, de dentro do movimento, é um trabalho imprescindível neste momento em que ele é limitado pelo “cidadanismo” interclassista; assim como o de diferenciar, dentre as demandas democráticas - cujo surgimento é natural em tempos de repressão -, aquelas que contribuem para a forja da organização revolucionária do proletariado - como a libertação dos presos políticos e a renúncia de Dina Boluarte - daquelas que a atrasam, como a da formação da assembleia constituinte, cujo sucesso implica numa situação de manutenção e normalidade para o Estado burguês. 

Tal independência precisa ser afirmada frente a todos os setores burgueses e pequeno-burgueses que demandam a estabilidade. Ecoando Marx e Engels, na famosa Mensagem da Direção Central à Liga dos Comunistas:

(…) os pequeno-burgueses em massa estarão enquanto possível hesitantes, indecisos e inativos nesta luta, para, uma vez assegurada a vitória, a confiscarem para si, exortarem os operários à calma e ao regresso ao seu trabalho (a fim de) evitar os chamados excessos e excluir o proletariado dos frutos da vitória. (…) Durante o conflito e imediatamente após o combate, os operários, antes de tudo e tanto quanto possível, têm de agir contra a pacificação burguesa e obrigar os democratas a executar as suas atuais frases terroristas. Têm de trabalhar então para que a imediata efervescência revolucionária não seja de novo logo reprimida após a vitória. Pelo contrário, têm de mantê-la viva por tanto tempo quanto possível. Longe de opor-se aos chamados excessos, aos exemplos de vingança popular sobre indivíduos odiados ou edifícios públicos aos quais só se ligam recordações odiosas, não só há que tolerar estes exemplos mas tomar em mão a sua própria direção. Durante a luta e depois da luta, os operários têm de apresentar em todas as oportunidades as suas reivindicações próprias a par das reivindicações dos democratas burgueses. Têm de exigir garantias para os operários assim que os burgueses democratas se prepararem para tomar em mãos o governo. (…) Têm principalmente de refrear tanto quanto possível, de toda a maneira mediante a apreciação serena, com sangue-frio, das situações, e pela desconfiança não dissimulada para com o novo governo, a embriaguês da vitória e o entusiasmo pelo novo estado de coisas que surge após todo o combate de rua vitorioso. (…) [3]

É importante lembrar: o Estallido Social no Chile em 2019 teve seu fim com o encaminhamento da luta para a demanda institucional de reforma da constituição, seguido da eleição de Gabriel Boric. O grupo chileno Vamos Hacia la Vida afirma em uma entrevista de 2023, sobre o processo de reforma constitucional:

O processo não foi uma “farsa” ou “espetáculo” só por ser insuficiente ou por sua origem falha no “Acuerdo por la Paz Social” negociado a portas fechadas, mas porque se posicionou como a melhor via de desativação da revolta. Foram notórios os esforços do progressismo para tentar fazer as massas insurretas dobrarem-se a sua demanda. (…)

É necessário desmontar a mitologia que a esquerda do capital está construindo sobre a revolta. Para eles, ela corresponderia a uma explosão de descontentamento das classes médias, no geral pacífica, que se viu manchada por atos violentos (como os saques, principalmente) organizados por ultra-esquerdistas, lumpen e bandos de traficantes, cujo caminho lógico e ascendente foi o processo constituinte que, por sua vez, supostamente perdeu por causa das fake news da direita ou uma imaturidade política estendida. [4]

Como aponta esse trecho, com a vitória burguesa ao fim de um período de luta, a própria memória sobre a revolta será moldada ao seu gosto, servindo - positiva ou negativamente - como pilar para o novo poder constituído. No Brasil, por exemplo, as revoltas de 2013 representam, na boca da canalha petista que no fim saiu vitoriosa, a “ascensão do fascismo”, a despeito dos trabalhadores presos e martirizados pelo Estado durante as mesmas. Até mesmo a assim chamada “esquerda socialista” capitula à narrativa petista: 

Celebra junho de 2013, mas condena o que se sucedeu nos anos seguintes como um sequestro das mobilizações por uma extrema direita hábil e capciosa.  A verdade é que a esquerda se retirou da luta contra o PT e passou a sustentá-lo, e assim entregou as ruas e toda revolta social aberta em 2013 nas mãos de pirralhos desconhecidos, como os do MBL, e depois para o “cabeça de toucinho” Jair Bolsonaro. [5]

Apesar disso, sabemos que, enquanto durar o atual ciclo de lutas, tais revoltas estão fadadas a voltar a acontecer. Os conflitos inter-burgueses no Peru têm raiz num processo similar ao que acontece no Brasil e no mundo: a instabilidade política causada pela inviabilidade de qualquer plano de crescimento econômico a longo prazo (para o desgosto do PT, PSOL, UP, PCBR e suas discussões desenvolvimentistas sobre o “projeto de país” herdadas do sindicalismo pelego). 

Se essa instabilidade abre espaço para a proliferação da porquice nacionalista, racista e queerfóbica que se vê pelo mundo hoje, a incapacidade de se chegar ao consenso também significa o aprofundamento geral do conflito. É o momento de se construir redes organizativas, estabelecer contatos e investigar atentamente as causas e o desenrolar das crises e lutas de trabalhadores pelo mundo. 

Neste sentido, compartilhamos com os camaradas anglófonos este texto de Sebastián Sarapura Rivas, da Perspectiva Socialista, que consideramos um balanço elucidativo das origens da crise peruana e uma análise bastante sóbria das tarefas dos comunistas  - a quem desejamos uma boa crise - durante a mesma. 


* Quando conversamos com Sebastián sobre a publicação de nossa tradução, ele nos contou que já havia uma versão traduzida, publicada no segundo número da revista Crítica Socialista. Decidimos, com a autorização do autor, publicar nossa tradução mesmo assim, pois acreditamos que a revista e nosso site possuem públicos diferentes.

[1] - “Paro nacional del 14 de mayo: ¿qué sectores paralizan hoy y qué regiones acatan la medida?” por Jordan Arce. Publicado em: https://www.infobae.com/peru/2025/05/11/paro-nacional-del-14-de-mayo-que-sectores-no-operaran-este-miercoles-y-en-que-regiones-lo-acataran/

[2] - “Mineros asesinados en Pataz habrían sido ejecutados ocho días antes de encontrar sus cuerpos en un socavón” por Renato Silva. Publicado em: https://www.infobae.com/peru/2025/05/04/mineros-asesinados-en-pataz-habrian-sido-ejecutados-poco-despues-de-su-secuestro/ 

[3] - “Mensagem da Direção Central à Liga dos Comunistas” por Marx e Engels. Publicado em: https://traduagindo.com/2021/07/24/marx-engels-mensagem-da-direcao/ 

[4] - “Chile: Plebiscito para desactivar la revuelta” por Vamos Hacia La Vida e Communaut. Publicado em: https://hacialavida.noblogs.org/chile-plebiscito-para-desactivar-la-revuelta/ 

[5] - “Dez anos depois: Celebrar junho de 2013 ou condenar a derrubada do PT?” por Transição Socialista. Publicado em: https://transicao.org/destaque/dez-anos-depois-celebrar-junho-de-2013-ou-condenar-a-derrubada-do-pt/**


fotografia do retablo feito pelo artista Edilberto Jiménez, inspirado no massacre de 15 de dezembro de 2022 em Ayacucho

Esta imagem é uma fotografia do retablo feito pelo artista Edilberto Jiménez, inspirado no massacre de 15 de dezembro de 2022 em Ayacucho. Fonte: https://huamangazo.pe/15-de-diciembre-el-documental-el-retablo-de-mi-protesta-se-estrena-en-ayacucho/

A interminável crise peruana e nossas tarefas

por Sebastián Sarapura Rivas (Perspectiva Socialista)

Publicado originalmente em espanhol em: https://perspectivasocialistaperu.com/la-interminable-crisis-peruana-y-nuestras-tareas/

No último dia 9 de janeiro completaram-se dois anos do massacre cometido pela Polícia Nacional do Peru (PNP) na cidade de Juliaca, região de Puno. A repressão violenta, executada sob o governo da presidente Dina Boluarte, deixou um saldo trágico de 18 pessoas falecidas e mais de uma centena de feridos, todos atingidos por disparos da PNP. Entre as vítimas mortais havia cidadãos que não participavam diretamente dos protestos, incluindo dois menores de idade: Brayan Apaza Jumpiri, de 15 anos, e Elmer Zolano Leonardo Huanca, de 16. 

O massacre de Juliaca se situa  na repressão do ciclo de mobilização popular que aconteceu no Peru entre dezembro de 2022 e março de 2023, após a destituição e o encarceramento do ex-presidente Pedro Castillo. Segundo o informe da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre estes acontecimentos, a repressão dos protestos se caracterizou por um uso desproporcional e letal de força que provocou a morte de ao menos 49 pessoas. [1]

A destituição - ou vacancia, como é conhecida no Peru - de Castillo foi a resposta do parlamento à sua tentativa de dissolver este poder do Estado, uma medida desesperada diante de seu crescente isolamento político e da ofensiva dos partidos de direita, particularmente do fujimorismo. Ainda que Castillo não tenha adotado nenhuma política anti-neoliberal relevante e, na prática, abandonou o programa de governo com o qual havia sido eleito, a direita parlamentar - representante dos setores mais conservadores e reacionários da sociedade - se organizou para destituí-lo desde o início de seu mandato em 2021. 

Apesar de suas evidentes particularidades, a destituição de Castillo tem semelhanças com outras destituições presidenciais ocorridas recentemente no Peru. A maioria desses episódios parece ter origem na correlação de forças adversa que os presidentes eleitos enfrentam. As constantes crises políticas desde 2016 têm um elemento em comum: o confronto entre os representantes do poder executivo e legislativo. Este conflito ocorreu mesmo quando ambos os poderes estavam nas mãos de partidos de direita e que, apesar de suas diferenças, tendem a coincidir na manutenção das políticas neoliberais vigentes no Peru há mais de duas décadas. 

Assim como Castillo em 2021, Pedro Pablo Kuczynski, ex-ministro da economia de várias gestões neoliberais e destacado lobista - a quem, portanto, não se pode acusar de ser esquerdista - , foi destituído em dezembro de 2017, após apenas um ano de governo, sob a acusação de “incapacidade moral”. Seu sucessor e vice-presidente, Martín Vizcarra, também foi destituído em novembro de 2020 sob a mesma figura jurídica. Esta última destituição desencadeou cinco dias de intensas mobilizações, principalmente na capital do país. A repressão brutal desses protestos deixou como saldo a morte de dois jovens: Inti Sotelo, de 24 anos, e Bryan Pintado, de 22.

Como se sabe, os protestos realizados na capital e em outras cidades do país forçaram a renúncia do presidente encarregado, Manuel Merino, que antes havia presidido o congresso e, por isso, assumiu o governo de maneira interina, com respaldo do fujimorismo e de outras forças de direita após a queda de Vizcarra. Merino foi sucedido por Francisco Sagasti, um congressista de direita liberal, que tentou sem muito êxito encontrar um consenso entre executivo e legislativo durante o breve período que esteve na função (2021-21). Assim, entre 2016 e 2023, o Peru teve um total de seis presidentes - quase um presidente por ano! - dos quais somente quatro chegaram ao cargo por sucessão constitucional. 

Apesar da estabilidade econômica e do crescimento constante em certos períodos - impulsionados principalmente pela alta nos preços do cobre -, a sociedade peruana segue enfrentando altos níveis de pobreza, desigualdade, desnutrição crônica e falta de acesso a serviços básicos para a maioria de sua população. As empresas peruanas mais competitivas no mercado mundial concentram-se na extração de minerais e na produção de alimentos, principalmente de origem agrícola e, em menor medida, provenientes da pesca industrial, todos destinados a satisfazer a demanda de mercados como o estadunidense, o chinês e o europeu. Outra fração relevante do capital corresponde aos conglomerados financeiros, que gerem uma ampla gama de investimentos e que, há décadas, obtêm lucros extraordinários aproveitando a cada vez mais aguda privatização da saúde e educação públicas, assim como o nicho aberto pelo desmantelamento do sistema público de pensões nos anos noventa. 

À margem dos setores formais, desenvolve-se no Peru uma extensa economia informal que absorve a maioria da população economicamente ativa (PEA). Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Informática (INEI), 73,5% dos trabalhadores peruanos atuam neste setor. O crescimento dessa economia - composta por empreendimentos capitalistas que evadem sistematicamente a legislação tributária, trabalhista e outras normativas para sobreviver no mercado - é consequência direta de dois fatores interligados. Por um lado, a especialização produtiva em matérias primas para a exportação, imposta pela divisão internacional do trabalho consolidada na década de noventa. Por outro, o aumento da população excedente para o capital, um fenômeno particularmente acentuado em países como o Peru, onde a produção industrial orientada ao mercado interno perdeu rentabilidade. Essa dinâmica acelerou a expansão de atividades econômicas de ainda menor produtividade ou que, quando são altamente produtivas, como a mineração transnacional, empregam uma força de trabalho escassa.

A expansão da informalidade está estreitamente vinculada à proliferação de atividades econômicas que operam completamente à margem da lei e sob lógicas lumpen. A estabilidade da moeda peruana, defendida pelos liberais como um indicador excepcional da boa saúde da economia que contrasta com a instabilidade de outros países latino-americanos, coexiste com a expansão do trabalho análogo à escravidão na produção têxtil, a mineração ilegal, a exploração madeireira ilegal, o tráfico de drogas e o tráfico de pessoas. Todas estas atividades, como demonstra a promulgação de leis adaptadas às suas necessidades, adquirem um peso cada vez mais significativo no âmbito político. 

A crescente degradação social e a instabilidade política dos últimos anos tornam-se incompreensíveis se se perde de vista as particularidades do capitalismo peruano que definem, por sua vez, as de sua classe dominante. Como diversos agrupamentos de esquerda começaram a sinalizar, as recentes crises políticas têm origem, em grande medida, no choque de interesses entre os setores empresariais mais concentrados e transnacionalizados, de um lado, e os setores emergentes de menor escala e produtividade, de outro, particularmente no âmbito informal. De acordo com essa hipótese, a concorrência pelo controle do Estado - especialmente entre partidos de direita - se explicaria pelo crescimento e irrupção destes últimos, que nas últimas duas décadas têm financiado ou fundado novas forças políticas para ampliar sua influência.

Mesmo que as contradições entre estes setores sejam evidentes, em questões essenciais, como a legislação trabalhista - o marco regulatório da compra e venda da força de trabalho -, não existem diferenças substanciais. De fato, ainda que seus representantes políticos pareçam travar uma guerra sem quartel desde ao menos 2016, disputando cada milímetro do governo, esse confronto não altera em nada sua correspondência na defesa da mesma ordem econômica. Em última instância, não são mais que “irmãos inimigos” que, apesar de suas rivalidades, compartilham uma mesma trincheira. Seu horizonte segue sendo preservar um sistema que, embora sujeito a disputas internas, beneficia a ambos. 

A crescente desregulação econômica poderia encontrar-se na raiz do problema, um processo que tem se aprofundado desde os anos 90 e que tende a intensificar igualmente a concorrência política. Paralelamente à proliferação de empreendimentos capitalistas de pequena escala, nas últimas décadas assistimos a um aumento sem precedentes da oferta de partidos políticos nos processos eleitorais. Como reflexo desta tendência, o número de partidos em concorrência teve um crescimento notável: segundo o Jurado Nacional de Eleições (Jurado Nacional de Elecciones), nas eleições gerais de 2026 poderão participar pelo menos 60 partidos, seis vezes mais do que nos comícios de 2001. Este incremento não deve ser considerado um dado menor quando se busca explicar a intensificação dos confrontos entre o Executivo e o Legislativo, assim como a crescente instabilidade política em geral. 

A destituição de Castillo se insere nestas tendências, embora apresente particularidades importantes. Em primeiro lugar, a imensa maioria dos trabalhadores peruanos viu em sua eleição uma alternativa real de mudança frente a décadas de neoliberalismo. Suas origens como dirigente de uma corrente sindical anti-burocrática no magistério e sua apresentação como membro das rondas campesinas cajamarquinas foi um fator chave no respaldo popular recebido por seu governo. Apesar de sua gestão ter se caracterizado por uma posição conciliadora, a adesão popular a sua figura, devido às suas origens, se manteve e foi o principal estímulo da resposta popular frente a sua destituição. 

A intensidade das mobilizações entre 2022 e 2023 é uma clara expressão disso. A vacancia e o encarceramento de Castillo foram percebidos pelos setores mobilizados como uma afronta à sua participação na democracia, mostrando que, no Peru, esta não passava de uma caricatura. A repressão estatal brutal também confirmou tragicamente essa realidade.

No entanto, esse não é o único fator determinante. A radicalidade das mobilizações se origina no aumento do custo de vida e na degradação social de décadas que afeta principalmente a população das regiões do sul andino e das zonas periféricas urbanas, as mesmas que se viram agravadas pelo aprofundamento da crise mundial, a guerra na Europa e a pandemia. Inquestionavelmente, durante o governo de Castillo já se haviam registrado mobilizações relacionadas à alta dos combustíveis ou o preço dos fertilizantes, cuja repressão também deixou vítimas fatais. 

Contudo, e apesar dessas contradições, não há dúvida de que o estopim das mobilizações de 2022 e 2023 foi a destituição de Castillo. Este fato explica, em grande medida, porque o movimento popular adotou, desde o início e de maneira majoritária, reivindicações de caráter político. Apesar das palavras de ordem não serem completamente homogêneas, entre as mais destacadas se encontravam o pedido por novas eleições gerais - sintetizado na palavra de ordem “que se vayan todos” -, a exigência de uma assembleia constituinte, a restituição e libertação de Castillo, assim como a demanda de liberdade para outros perseguidos políticos sob o governo de Boluarte. 

A imensa maioria dos partidos de esquerda, inclusive aqueles com representação no parlamento, como o Perú Libre, partido pelo qual Castillo foi eleito, se manteve a reboque das iniciativas das organizações surgidas fora da capital, especialmente no sul andino do país. Ao somarem-se tardiamente, eles tiveram uma participação quase nula nas ações de luta mais decisivas, como os bloqueios de estradas e a ocupação de prédios de algumas instituições públicas e privadas. Por sua parte, a dirigente e ex-candidata à presidência da coalizão progressista Juntos por el Perú, Verônica Mendoza, não demorou em reconhecer Dina Boluarte como presidente e só denunciou seu governo quando a repressão se tornou absolutamente violenta e explícita. 

Essa brutal repressão estatal se explica como uma medida preventiva contra o possível desenvolvimento do movimento contestatário surgido no interior do país, oposto a todos os partidos de direita e distante da esquerda institucional. A renúncia de Boluarte, apesar de não implicar na realização plena das principais reivindicações populares, seria vista como uma derrota para a direita em conjunto, e um fator que sem dúvidas fortaleceria a organização popular independente, impulsionando a projeção de seus dirigentes no cenário político nacional. Daí a ferocidade com que combateram as mobilizações, o uso letal da força e a perseguição política e judicial que continua contra ativistas e dirigentes que participaram dos protestos. 

O massacre de Juliaca, assim como os massacres perpetrados em Ayacucho, Apurímac e outras cidades peruanas entre 2022 e 2023, permanece na impunidade, apesar das denúncias de organismos internacionais como a CIDH. Os processos judiciais iniciados pelos familiares das vítimas receberam pouquíssima atenção ou apoio por parte da esquerda institucional, mais preocupada com futuros processos eleitorais. Está claro que esta não constituirá uma alternativa à debacle neoliberal, e que tampouco tem condições para impulsionar uma luta decisiva em favor das liberdades democráticas, hoje tão constantemente atacadas no Peru. É nas redes de solidariedade surgidas no último ciclo de mobilização - integradas por coletivos de juventude, federações estudantis universitárias, artistas e intelectuais de esquerda, associações de mártires e alguns pequenos grupos radicais de esquerda - em que se vislumbram as bases para uma alternativa democrática e socialista. 

A tarefa imediata deste movimento é derrotar o governo autoritário de Dina Boluarte e a coalizão cívico-militar que o respalda. Isto implica em retomar as mobilizações até alcançar sua renúncia, exigindo, além disso, a acusação judicial de todos os políticos e militares responsáveis pelos crimes cometidos durante sua gestão. O fechamento do congresso e a convocação de novas eleições gerais devem ser uma consequência da mobilização contra estes crimes, e não um fim em si mesmo como planejam a maioria das organizações da esquerda institucional. Também é fundamental a luta pela libertação, não só de Pedro Castillo, mas de todos os dirigentes sociais que enfrentam julgamentos infames e acusações grosseiras de terrorismo por sua participação nos protestos. 

Estas reivindicações democráticas só serão alcançadas se se articularem com as lutas em curso de outros setores da classe trabalhadora que não participaram diretamente nas mobilizações recentes, devido fundamentalmente ao abandono do trabalho de base por parte das organizações de esquerda nas últimas décadas. Um desinteresse que, diga-se de passagem, não é casual, pois é parte de uma opção consciente que prioriza a disputa dentro das instituições do Estado. O proletariado da grande mineração, que ao longo do século XX se destacou por sua combatividade e elevada consciência política, pode e deve integrar-se a uma posição dirigente nas lutas imediatas do povo peruano, já que sua posição na produção o concede uma vantagem estratégica frente à dominação política e econômica dos capitalistas e seus representantes políticos. 

A luta pelas liberdades democráticas não é um fim em si mesma, mas um momento de desenvolvimento da organização operária independente, que pode, em um curto espaço de tempo, embarcar decisivamente na luta pelo socialismo. A unidade da classe trabalhadora e de todos os oprimidos contra o regime de Boluarte pode ser o catalizador que, superando os impasses organizativos e a repressão do período atual, dê lugar a um movimento capaz de lançar as bases para a constituição do partido que expresse os interesses históricos dos trabalhadores e que adote como perspectiva estratégica a expropriação dos expropriadores.

[1] - Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Situación de Derechos Humanos en Perú en el contexto de las protestas sociales, 2023.